Imaginou entrevistas com
Mata Hari e
Conan Doyle,
enviou reportagens da "Rússia dos sovietes" sem nunca lá ter posto os
pés, criou um dos primeiros detectives de gabinete da literatura
policial, deu forma a uma galeria interminável de heróis de folhetim,
fundou jornais, realizou filmes, previu, ao jeito de
Júlio Verne, como seriam Lisboa e o Porto no ano 2000.
Reinaldo Ferreira. R de realidade e F de ficção. Nasceu há um século.
Os 38 anos da sua breve passagem pelo mundo foram vividos à beira do
delírio, com a morfina a ajudar. Um tipógrafo distraído inventou a
alcunha que o iria consagrar: Repórter X.
- O menino já fez incêndios?
Na redacção de "A Capital", a mãos com a cobertura da recém-deflagrada
Primeira Guerra Mundial,
Garibaldi Falcão, jornalista da velha guarda, interpelava um jovem
aprendiz de 16 ou 17 anos. Interpretando mal a pergunta, e julgando que o
tomavam por pirómano, Reinaldo Ferreira retorquiu com um indignado
"Não, senhor!". Foi a primeira reportagem do futuro Repórter X: um fogo
posto na rua lisboeta da Estefânia.
Mas a sua adolescência, formada na leitura dos folhetins policiais e
de espionagem, enfadava-se com a insossa rotina dos "casos do dia". E
como a realidade se obstinava em lhe negar assuntos palpitantes, só lhe
restava inventar. E inventou, há que dizê-lo, a torto e a direito. Ainda
hoje será difícil determinar todas as suas "reinaldices", para usar a
expressão posta a correr pelos que lhe iam desmascarando as farsas. Ele,
porventura consciente de que essa pulsão para confundir factos e
ficções era, afinal, o sinal distintivo do seu génio peculiar, retorquia
com um neologismo da sua própria lavra: "reporterxizar".
Em
1917, com dezenove anos - nasceu em
Lisboa no dia 10 de Agosto de
1897
- arrepia os lisboetas com o crime, tão tenebroso quanto inexistente,
da Rua Saraiva de Carvalho, que metia malfeitores empuçados, um
presumível cadáver e um vilão, apropriadamente designado como "o homem
dos olhos tortos". A história veio a lume n' "O Século", em forma de
cartas enviadas "por um desconhecido", que se assinava Gil Goes. E a
coisa atingiu tais proporções que o jornal achou prudente revelar o
embuste. Mas o folhetim, finalmente assumido como ficção, prosseguiu até
ao seu desenlace, e não tardou a transformar-se em livro - "O Mistério
da Rua Saraiva de Carvalho" -, que
José Leitão de Barros
tentou mesmo adaptar ao cinema com o título "O Homem dos Olhos Tortos".
Segundo Joel Lima, minucioso biógrafo do Repórter X e autor de um
extenso prefácio à recente reedição conjunta das suas histórias do "Dr.
Duque, o Cartomante do Raciocínio" - uma espécie de Nero Wolfe "avant la
lettre" -, a Cinemateca Nacional conserva ainda mil metros de película
rodados para este abortado projecto.
Escassos meses após ter encerrado as aventuras de Gil Goes, Reinaldo Ferreira publica em "A Manhã", em Março de
1918,
um "inquérito à mendicidade". Fez-se fotografar mal barbeado e
andrajoso, de mão estendida, e o público convenceu-se de que o repórter
fizera, de facto, vida de mendigo. Mas, salvo o retrato, era tudo
inventado, incluindo os 47 centavos que lhe teria rendido esta incursão
na indigência.
Neste mesmo ano, volta à carga em "O Século" com o suposto
assassinato de uma estrangeira, perpetrado pelo respectivo marido numa
pensão de Lisboa. Desta vez, auxiliado por
Stuart de Carvalhais,
vai ao ponto de pôr um quarto da dita pensão em pantanas e de espalhar
sangue de galinha pelo aposento. E, a encerrar o ano de 1918, " recolhe"
as últimas palavras do presidente
Sidónio Pais,
assassinado na Estação do Rossio: "Morro eu, mas salva-se a Pátria". A
verdade é que não presenciou o sucedido e, ao que parece, o estadista
tombou sem ter tido tempo de dizer seja o que for.
- Ir à Rússia sem sair de Paris
Já casado com Lucília Ferreira - de quem depois procurará debalde
divorciar-se -, e sendo já pai de uma filha, Yolanda, Reinaldo Ferreira
abala em
1920 para Paris, ao serviço da filial francesa da Agência Americana, que fora fundada pelo escritor brasileiro
Olavo Bilac.
Pelos finais do ano seguinte já deixara esta empresa e radica-se em
Barcelona com a família, incuindo a mãe, que o pai abanonara. É aqui que
nasce Edgar Reinaldo, que depois será o poeta
Reinaldo Ferreira (filho).
Com a subida ao poder de
Primo de Rivera,
o jornalista regressa a Portugal, mas não sem antes enviar de Barcelona
uma crónica à imprensa de Lisboa, atacando o ditador. Assina o artigo
com o seu próprio nome, mas um amigo faz-lhe ver que poderia sofrer
represálias e, prudente, Reinaldo escreve por cima "Repórter". Todavia,
por um desses acasos do destino, o tipógrafo que recebe a peça vê um "x"
no que não era mais do que o rabisco final da mal escondida assinatura.
Nascia, assim, o Repórter X.
Já empregado no "ABC", o jornal envia-o à
Rússia, em
1925, para acompanhar a luta intestina desencadeada após a morte de
Lenine.
De Paris, onde terá experimentado pela primeira vez a morfina, Reinaldo
informa que lhe está a ser difícil conseguir um visto, mas vai mandando
trabalho, designadamente uma entrevista forjada a Conan Doyle. E,
finalmente, começam a chegar as crónicas de
Moscovo, onde o jornalista passa a vida a tropeçar em portugueses, desde o porteiro do
Kremlin
ao homem que embalsamou Lenine. A convicção de Joel Lima é a de que o
nosso repórter nunca pôs os pés na Rússia e que se limitou a ficar em
Paris, aguardando os artigos de Henri Béraud, que para lá fora destacado
pelo "Le Journal".
Em
1926
está de novo em Portugal, fixando-se agora no Porto e escrevendo
simultaneamente para o ABC e para "O Primeiro de Janeiro". É em Março
desse ano que se dá em Lisboa o célebre assassinato da corista Maria
Alves, estrangulada num táxi e lançada morta para a sarjeta. Baseando-se
em anteriores crimes congéneres e na intriga de um romance espanhol,
Reinaldo aventa nos jornais que o culpado é o ex-empresário da vítima,
Augusto Gomes. E o espantoso é que acerta.
Aproveitando mais este sucesso do então já famoso Repórter X, o "Janeiro" publica-lhe o folhetim "
O Táxi nº 9297",
que irá ser publicado em livro, levado ao palco e convertido em filme,
que o próprio Reinaldo Ferreira dirigirá no Porto, nos estúdios da
falida
Invicta Film, com
Alves da Costa no papel do protagonista. Já em
1924 vira adaptada ao cinema, em Espanha, a novela
El Botones del Rit (
O Groom do Ritz), e a sua
Repórter X Film produzirá ainda três curtas-metragens.
- O desvairado caso das libras de louça
Abandonado por Lucília em 1928, Reinaldo passa a viver no ano
seguinte com Carmen Cal, ainda aparentada com a família portuense dos
advogados Cal Brandão. Continua, entretanto, a trabalhar no "Janeiro",
onde congemina a mais inverosímil das suas "reinaldices": uma alegada
campanha alemã para desacreditar a moeda inglesa, que passaria pela
produção de libras de louça. Isso mesmo, de louça; quebravam-se e tudo. O
pior é que envolveu na trama o banqueiro Francisco Borges, do Banco
Borges & Irmão, e a coisa, naturalmente, deu para o torto. Despedido
do diário portuense, que ainda assim voltará depois a empregá-lo, funda
vários jornais de pouca dura, até que, em
1930, financiado por um irmão, Ângelo, lança, em Lisboa, o "Repórter X", que durará até
1933.
A chefia da redacção é confiada a Mário Domingues, que fora seu
condiscípulo no Colégio Francês e que não tarda a abandonar o projecto
para fundar "O Detective", onde denunciará, aliás, algumas
"reinaldices".
De novo no Porto, Reinaldo Ferreira é internado, em finais de 1932,
para uma cura de desintoxicação. E escassos meses depois decide
confessar a sua morfinomania nas páginas do "Repórter X", dando também à
estampa o primeiro volume - e o único que publicou em vida - das
"Memórias de um ex-morfinómano".
No final da vida ainda lançará os efémeros jornais "A Reportagem da
Semana" e o "X". Mas, regressado à dependência da morfina, separa-se em
1935
de Carmen - de quem tivera um filho, Oswaldo - e, no dia 4 de outubro
desse ano, morre em Lisboa, num prédio do actual Largo de S. Carlos.
Além das suas reportagens, entre as quais se contam fascinantes
visões futuristas do Porto e Lisboa do ano 2000, Reinaldo Ferreira
deixou ainda uma quantidade assombrosa de novelas, sobretudo policiais e
de espionagem, além de várias peças de teatro. No "Diabo", Fernando de
Araújo Lima garantirá, após a sua morte, que o viu escrever de jacto, a
uma mesa do café portuense Avenida, para ganhar uma aposta de 250
escudos, a novela "Impossível", editada em
1929.
Se, como jornalista, e não obstante os seus múltiplos talentos,
Reinaldo Ferreira merece óbvias reservas, já a sua inspiração
torrencial, e até as acidentadas circunstâncias da sua biografia, fazem
dele uma das nossas mais fascinantes figuras da primeira metade do
século: uma espécie de Camilo da "série B".
Artigo de Luís Miguel Queirós, colocado na Wikipédia pelo autor, publicado no PÚBLICO em 10.08.1997