Há uma data que vai marcar, para sempre, a história da freguesia da
Ribeira Quente, no concelho da Povoação, onde a 31 de outubro de 1997 a
chuva intensa provocou derrocadas e 29 pessoas morreram soterradas.
“Todos nós, porque é uma freguesia pequena, acabámos por perder algum
amigo. Temos também situações de famílias que desapareceram quase
todas, é o caso de um pescador que andava na minha embarcação e que
perdeu a mulher e os quatro filhos. Situações destas marcam muito o
sentimento das pessoas na freguesia e ainda hoje, principalmente quando
se chega perto da data, ninguém deixa de ficar comovido”, conta o
presidente da Junta de Freguesia da Ribeira Quente, Gualberto Rita.
No dia da tragédia, que vitimou residentes entre as três semanas de
idade e os 76 anos, Gualberto Rita, de 44 anos, morava na freguesia.
Acabou por deixá-la, quando os deslizamentos de terras a deixaram
irreconhecível.
“Na altura, os peritos na matéria disseram que o deslizamento poderá
ter atingido os 200 quilómetros/hora e que foi de tal forma brusco que
cortou as casas pelos alicerces”, recorda.
Maria do Carmo Moniz, de 65 anos, perdeu o marido naquela madrugada,
mas os filhos foram poupados, assim como outros familiares que se
refugiaram na casa, fugindo às inundações nas habitações junto à ribeira
que atravessa parte da freguesia.
“A minha mãe dizia que no fim do mundo iria haver um terramoto e eu na
minha ideia pensava que era o terramoto de que a minha mãe falava”,
explica, lembrando que o rés-do-chão foi o abrigo de todos, pelo menos
até uma segunda derrocada os atirar para fora de casa.
O marido já não teve hipótese. A casa encheu-se de entulho, terra, pedras, roupas da vizinha de cima.
Maria do Carmo e os familiares refugiaram-se na única casa poupada às enxurradas, noutra rua.
“Começámos a puxar as pessoas, mas algumas já iam na lama, vinham todas
enroladas e cortadas dos vidros. Houve uma grávida que foi salva,
assim como um rapaz que foi agarrado pelos cabelos”, lembra por sua vez
Aida Arruda, de 57 anos, dona da única casa que ficou intacta e que foi
abrigo de dezenas de pessoas.
Aida Arruda não esquece a noite “horrorosa” em que “não se via nada”, já que não havia eletricidade, água ou telecomunicações.
“Há coincidências que não têm explicação, porque o meu marido tinha
trazido naquele dia um Petromax [candeeiro a petróleo] da casa da minha
sogra sem nenhuma razão e foi isso que ajudou a puxar as pessoas”, diz.
Silvino Amaral, de 82 anos, pároco na Ribeira Quente há 56, fez os 29
funerais das vítimas, numa altura em que a freguesia ficou inacessível
por terra, com as autoridades a deslocarem-se de helicóptero.
“Foi uma tragédia num lugar tão pequenino, eu conhecia-os quase todos,
cheguei a batizar alguns, ainda acartei alguns cadáveres do posto
clínico para o centro social e depois fiz o velório. Não tínhamos água e
lavámos os cadáveres com água da chuva”, descreve o sacerdote.
O pároco da Ribeira Quente relembra o clima de medo vivido nos momentos
seguintes à tragédia, num “ambiente de tal ordem” que a população nem
sequer compareceu aos velórios com medo de nova catástrofe.
Às avalanches de terra sucedeu-se uma avalanche de generosidade, refere
o padre, apontando donativos do continente, mas também do estrangeiro
ou de entidades como a Caritas. Foi, inclusive, “criada de imediato uma
comissão de gestão dos donativos para distribuir pelas vítimas”.
Depois da tragédia de 1997, foi construído um heliporto junto à praia
da Ribeira Quente, tendo em conta a existência de “uma estrada de
risco” como única via de acesso à freguesia, a mesma que existe até
hoje.
Silvino Amaral garante que a tragédia se mantém na memória da população
da Ribeira Quente, tanto que as chuvas intensas que ocasionalmente
caem sobre a freguesia deixam “as pessoas em sobressalto”.
“Isto é uma fajã e estas fajãs têm essa sina, esse risco, estão
engolidas por mar e esmagadas pela montanha, de maneira que a todo o
tempo pode acontecer”, afirma.