TEIXEIRA, UM FUTRICA ESTUDANTE!
I
Quem não se lembra do
Teixeira? – Ó ‘tor, tem aí um cigarro? – Não fumo, pá! – Umm… ó ‘tor, então
paga-me um fino e uma sandes?
Figura bizarra,
fisicamente distorcida, um misto de homem e criança… conheci-o na década de 50,
era eu bicho no D. João III – hoje José Falcão. Nessa altura
ele engraxava numa barbearia que ficava no 13 da Tenente Valadim, um pouco à
frente do quiosque que faz esquina com a Praça da República. O corte de cabelo
ficava em 4$00, mais 5 tostões de gorjeta e outro tanto para o Teixeira
engraxar, ou seja, com 5 mil reis estava a festa feita.
O Teixeira, que
décadas mais tarde viria ser conhecido por “Taxeira”, andaria nessa altura
pelos 30 anos mas a sua figura pouco se modificou depois disso. É que o tempo
ia passando... e o Teixeira não. As gerações de estudantes foram deslizando à
sua frente, à razão de duas por década, mas o Teixeira era sempre o mesmo,
ainda que a imagem que ele de nós via se lhe fosse toldando na retina, à medida
que a sua imagem em nós tão nítida permanecia.
Estou a vê-lo agora
na barbearia! De fato-macaco azul, sentado à minha frente sobre a caixa da
ferramenta, por certo em terceira mão e com a madeira surrada do castanho e
preto da graxa. Cabelo farto, de poupa à Elvis, barba de uma semana – santos de
casa não fazem milagres... – cigarro encharcado ao canto da boca –
"Provisórios"? "Definitivos"? "20-20-20"? Talvez
“Kentuky”, que a cigarro dado não se olha a marca… – uma perna encolhida, outra
estendida na minha direcção. Penso que nessa altura não usava ainda sapatilhas.
Ao que me lembre, era
um pouco trapalhão na sua arte: punha a graxa com os dedos, deixava que a dita
lambesse as meias do cliente e julgo que, de quando em vez, cuspia no pano para
melhor fazer correr o lustro. Olhar ausente, resmungava as últimas da Académica
nos raros intervalos que o barbeiro deixava para intervenções alheias. Às vezes
zarpava da barbearia sem aviso, para exaspero do Sô António, o qual
acumulava as funções de barbeiro com as de patrão e contava com o Teixeira para
combater a concorrência da barbearia da porta mesmo abaixo, onde o Sô Carlos
lhe disputava a clientela.
Mas o Teixeira, não
dava a sensação de ter um gosto especial pela profissão de engraxador, o que só
lhe creditava sabedoria. Do que ele gostava mesmo era de ir com a malta! Ir nas latadas, saltar para arena na garraiada,
posar em tudo o que fosse fotografia de curso, rasganço ou cortejo da Queima, viver na crava pelas Repúblicas
e cafés, apregoar o Ponney e a Via Latina com a sua voz roufenha, conviver de igual para igual
com os da sua classe: os estudantes!
E a malta, que na sua
irreverência juvenil tantas vezes é cruel para as figuras bizarras da
sociedade, a malta brincava com ele mas não o gozava ou, se o fazia, era com o
carinho com que se trata um irmão mais novo. Alguém me contou que o Teixeira sabia
dois poemas de cor e os recitava (à sua maneira…), a pedido e em cima dum
banco; mas só o fazia depois de se certificar de que não andassem futricas por perto. Afinal, ele tinha
sido um dia proclamado “Quartanista de Medicina honoris causa” e
tratava os caloiros por tu, como conta Reis Torgal no seu Coimbra – Boémia
da Saudade. Brincar com a família, sim! Mas nunca na presença de estranhos…
Muita gente tem
estórias do Teixeira para contar, desde a ida ao casino da Figueira, de fraque
e anel de brasão no dedo, onde só terá sido desmascarado por querer oferecer um
pirolito a uma requintada senhora, até ao telefonema que terá feito ao Reitor
da Universidade a pedir satisfações, aquando da crise de 69. A última que li
foi-me descrita por um amigo [1] nestes termos: «… Foram com ele a Barcelona
(Clínica Barraquer), estava ele quase cego. Recusou-se a ir de avião, por lhe
provocar imenso medo essa ideia. Disseram-lhe que iriam de camioneta. Pois a
cegueira dele era tal que ele embarcou no avião e, durante a viagem, dizia que
as estradas espanholas eram maravilhosas, pois o autocarro não fazia ruídos
nenhuns. Enfim, a Academia tratava sempre bem as suas "figuras"!»
E tratava… o melhor
que podia: dava-lhe abrigo – num torreão (antiga bilheteira) do campo de Santa
Cruz, tendo o Zé Freixo e Belmiro por anfitriões – até que um dia lhe fizeram
mesmo uma casa de verdade! Dava-lhe de comer nas Repúblicas e cantinas, dava-lhe
cigarros, tratava-lhe da cegueira e outros achaques, sentava-o à mesa do café, apaparicava-o…
e até tinha lugar cativo no autocarro da Briosa!
Só há alguns anos,
lendo o livro de Reis Torgal e pedindo informações a amigos, soube o seu
verdadeiro nome. Chamava-se Raúl dos Reis Carvalheira. O nome Teixeira foi-lhe
posto por ser sósia dum interior esquerdo do Benfica – Teixeira de seu nome –
que a malta odiava por ter deixado os dentes marcados na barriga do Faustino, half-centro da Académica, por volta de 1940. Desde que as parecenças foram
descobertas, passaram a chamar Teixeira ao Raúl, que começava a aparecer nas
latadas; quanto ao verdadeiro Teixeira, o do Benfica, passou a Academia a
chamar-lhe "Cão", por razões que bem se entendem.
O Teixeira nasceu em Torres
do Mondego, que na altura ainda era freguesia de Santo António dos Olivais, em
09/09/1926, tendo falecido em Coimbra, na Casa dos Pobres, na Rua Adelino Veiga, em
29/02/2000.
A última vez que o vi
foi já há muitos anos. Achei-o feliz. Uma espécie de lenda viva, muito
acarinhado, muito cegueta e, talvez por isso, pairando um pouco acima do
quotidiano. Que se passou desde então? Como viveu os últimos anos? Como morreu?
Não sei. Mas admito que tenha sido em paz. Quem tinha uma família do tamanho da
Academia não se deve ter sentido sozinho.
II
A origem do nome
Teixeira está explicada mais acima. Porém, a partir de determinada altura na década de 80, o Teixeira
passou a ser igualmente conhecido por “Taxeira”, ao que se supõe, devido «à taxa que se encarregava de cobrar através
do apelo: “moedinha, ó sócio”» [2] . No início dos anos 90, os dois nomes
ainda coexistiam; mas quando falamos com estudantes que chegaram a Coimbra mais
tarde, verificamos que estes já só retiveram o nome “Taxeira” [3].
E foi “Taxeira” que
ficou registado na placa que se encontra à entrada de uma pequena
rua transversal à Rua de Aveiro, já que em 2007 a edilidade de Coimbra resolveu
atribuir o nome de uma rua da cidade à memória desta ilustre figura, cuja
última profissão conhecida foi a de ardina. [4]
Mas quem era, afinal,
o verdadeiro Teixeira, o do Benfica, o tal que em Coimbra ganhou a alcunha de “Cão”?
Ouçamos, então o contraditório, pela pena do blogue Glórias do Passado, de cuja extensa biografia aqui transcrevo
apenas um curto extrato [5]:
«O popular “Semilhas”, “Gasogéneo” ou “Marreco” foi um
dos mais emblemáticos e categorizados futebolistas portugueses da década de 40,
essencialmente, envergando, com êxito, as cores do SL Benfica, do Vitoria SC e
também de Portugal, tornando-se mesmo, no primeiro jogador açoriano a representar
as Seleção Nacional. Natural da Horta, Ilha do Faial, nos Açores, Joaquim
Teixeira, o seu verdadeiro nome, nasceu no dia 18 de Março de 1917.» Era, portanto, quase dez anos mais velho que o seu sósia,
o nosso Teixeira.
A Parte I desta
crónica foi escrita em 2/3/2011, sob o título “TAXEIRA”, UM FUTRICA ESTUDANTE. Posteriormente,
entendi ser mais adequado alterar o título para TEIXEIRA, UM FUTRICA ESTUDANTE,
como forma de não contribuir para o esquecimento da alcunha original do nosso “Quartanista
de Medicina honoris causa”. Para além
disso, foram surgindo novas informações que me pareceu interessante acrescentar
a uma página que, segundo as estatísticas do blogue, continua a ser
razoavelmente visitada.
Foi por essas razões
que, ao texto inicial, acrescentei agora a Parte II e reeditei a crónica.
Post Scriptum
Há alguns anos atrás,
fui até Coimbra e lembrei-me de revisitar o 13 da Tenente Valadim, curioso de
rever a velha barbearia ou o que dela restasse. Queria bisbilhotar, saber quem
por lá estaria, se o estabelecimento ainda mexia, se teria mudado de ramo… De
facto, tudo deveria estar diferente e eu só esperava poder entrar ou, mesmo
ficando à porta, antever a cadeira de barbeiro do Sô António e imaginar o
Teixeira engraxando na parte de trás, no enfiamento da janela, enquanto, na
porta mais abaixo, o outro barbeiro, o Sô Carlos, procurava afanosamente
combater a concorrência da barbearia onde o Teixeira engraxava.
Razão tinha quem
dizia que nunca devemos voltar aos sítios onde fomos felizes!...
Zé Veloso
[1] Francisco José
Carvalho Domingues.
[2] Conforme folheto
referente ao descerramento da placa toponímica e dados biográficos da reunião
da Comissão de Toponímia, de 14 de maio de 2007.
[3]
Estes intervalos de tempo resultam das respostas obtidas num inquérito
que fiz aos membros do grupo do Facebook "Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA"
[4] Para localização
da rua, vide Google Maps:
[5] http://gloriasdopassado.blogspot.pt/2011/01/joaquim-teixeira.html
As fotografias onde aparece
o Teixeira pertencem ao Arquivo
Formidável da IMAGOTECA – Biblioteca Municipal de Coimbra – e foram cedidas
exclusivamente para ser utilizadas no Penedo d@ Saudade, não
podendo ser cedidas a outrem sem a devida autorização.
A fotografia de
Joaquim Teixeira, que chegou a ser o melhor marcador do Benfica na época de 1944/45, foi obtida do blogue Glórias
do Passado.
As restantes fotos
foram obtidas pelo autor deste blogue.in Penedo d@ Saudade