Ramalho Ortigão nasceu no Porto, na Casa de Germalde, freguesia de
Santo Ildefonso.
Era o mais velho de nove irmãos, filhos do primeiro-tenente de
artilharia Joaquim da Costa Ramalho Ortigão e de D. Antónia Alves Duarte
Silva Ramalho Ortigão.
Viveu a sua infância numa quinta do Porto com a avó materna, com a
educação a cargo de um tio-avô e padrinho Frei José do Sacramento. Em
Coimbra, frequentou brevemente o curso de Direito, começando a trabalhar
como professor de francês no colégio da Lapa, no Porto, de que seu pai
era diretor, e onde ensinou, entre outros, Eça de Queirós e Ricardo
Jorge. Por essa altura, iniciou-se no jornalismo colaborando no Jornal do Porto.
Em 24 de Outubro de 1859 casou com D. Emília Isaura Vilaça de Araújo Vieira, de quem veio a ter três filhos: Vasco,
Berta e Maria Feliciana.
No ano seguinte, em 1867, visita a Exposição Universal em Paris, de que resulta o livro
Em Paris,
primeiro de uma série de livros de viagens. Insatisfeito com a sua
situação no Porto, muda-se para Lisboa com a família, agarrando uma vaga
para oficial da
Academia das Ciências de Lisboa.
Reencontra em Lisboa o seu ex-aluno
Eça de Queirós e com ele escreve um "romance execrável" (classificação dos autores no prefácio de 1884):
O mistério da estrada de Sintra (1870). No mesmo ano, Ramalho Ortigão publica ainda
Histórias cor-de-rosa e inicia a publicação de
Correio de Hoje (1870-71). Em parceria com Eça de Queirós, surgem em 1871 os primeiros folhetos de
As Farpas, de que vem a resultar a compilação em dois volumes sob o título
Uma Campanha Alegre.
Em finais de 1872, o seu amigo Eça de Queirós parte para Havana
exercer o seu primeiro cargo consular no estrangeiro, continuando
Ramalho Ortigão a redigir sozinho
As Farpas.
Entretanto, Ramalho Ortigão tornara-se uma das principais figuras da chamada
Geração de 70.
Vai acontecer com ele o que aconteceu com quase todos os membros dessa
geração. Numa primeira fase, pretendiam aproximar Portugal das
sociedades modernas europeias, cosmopolitas e anticlericais. Desiludidos
com as Luzes europeias do progresso material, porém, numa segunda fase
voltaram-se para as raízes de Portugal e para o programa de um
"reaportuguesamento de Portugal". É dessa segunda fase a constituição do
grupo "
Os Vencidos da Vida", do qual fizeram parte, além de Ramalho Ortigão, o
Conde de Sabugosa, o
Conde de Ficalho,
Marquês de Soveral,
Conde de Arnoso,
Antero de Quental,
Oliveira Martins,
Guerra Junqueiro,
Carlos Lobo de Ávila,
Carlos de Lima Mayer e
António Cândido.
À intelectualidade proeminente da época juntava-se agora a nobreza,
num último esforço para restaurar o prestígio da Monarquia, tendo o Rei
D. Carlos I sido significativamente eleito por unanimidade "confrade suplente do grupo".
Na sequência do assassínio do Rei, em 1908, escreve
D. Carlos o Martirizado.
Com a implantação da República, em 1910, pede imediatamente a Teófilo
Braga a demissão do cargo de bibliotecário da Real Biblioteca da Ajuda,
escrevendo-lhe que se recusava a aderir à República
"engrossando assim o abjecto número de percevejos que de um buraco estou vendo nojosamente cobrir o leito da governação". Saiu em seguida para um exílio voluntário em Paris, onde vai começar a escrever as
Últimas Farpas (1911-1914) contra o regime republicano. O conjunto de
As Farpas, mais tarde reunidas em quinze volumes, a que há que acrescentar os dois volumes das
Farpas Esquecidas, e o referido volume das
Últimas Farpas,
foi a obra que mais o notabilizou por estar escrita num português
muito rico, com intuitos pedagógicos, sempre muito crítico e revelando
fina capacidade de observação. Eça de Queirós escreveu que Ramalho
Ortigão, em
As Farpas, "estudou e pintou o seu país na alma e no corpo".
"A orientação mental da mocidade contemporânea comparada à
orientação dos rapazes do meu tempo estabelece entre as nossas
respetivas cerebrações uma diferença de nível que desloca o eixo do
respeito na sociedade em que vivemos obrigando a elite dos velhos a
inclinar-se rendidamente à elite dos novos".
Padecendo de um cancro, recolheu-se na casa de saúde do Dr. Henrique de
Barros, na então Praça do Rio de Janeiro, em Lisboa, vindo a falecer em
27 de setembro de 1915, na sua casa, na Calçada dos Caetanos, freguesia
da Lapa.
Foi Comendador da Ordem de Cristo e Comendador da Ordem da Rosa, no
Brasil. Além de bibliotecário na Real Biblioteca da Ajuda, foi
Secretário e Oficial da Academia Nacional de Ciências, Vogal do Conselho
dos Monumentos Nacionais, Membro da Sociedade Portuguesa de Geografia,
da Academia das Belas-Artes de Lisboa, do Grémio Literário, do
Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro,
e da Sociedade de Concertos Clássicos do Rio de Janeiro. Em Espanha,
foi Grã-Cruz da Ordem de Isabel a Católica, membro da Academia de
História de Madrid, da Sociedade Geográfica de Madrid, da Real Academia
de Bellas Artes de San Fernando, da Unión Iberoamericana e da Real
Academia Sevillana de Buenas Letras.
NOTA: um grande português e um grande escritor, um homem digno e de
palavra, com ideais e que sobrepunha os seus ideais ao seu bolso. Para
entenderem o que eu digo, aqui fica citada, na íntegra, a carta de
demissão do cargo de bibliotecário da Real Biblioteca da Ajuda, dirigida
ao Presidente da República:
Quinta de S. José, em Linda-a Pastora, 16 de outubro de 1910
Meu caro Teófilo Braga:
O carácter inalteravelmente afetuoso
das nossas relações, através de uma íntima convivência de mais de
quarenta anos, me anima a dirigir esta carta ao chefe do atual governo
da Nação. Sabe muito bem V., conhecendo a minha orientação mental, que,
indiferente às formas de governo, nada em política me é mais
profundamente antipático do que o votismo e o parlamentarismo, que eu
considero os mais destrutivos agentes da capacidade administrativa em
democracias insuficientemente educadas para a liberdade. O governo a que
V. preside provém da intervenção fortuita de uma elite que distribuiu o
exercício das funções pela especialização das capacidades. Esta génese
torna para mim particularmente interessante e atraente o seu governo.
Não vá porém julgar, meu caro Teófilo, que por meio desta sincera
confissão eu venho formular a minha adesão à República, engrossando
assim o abjeto número de percevejos que de um buraco estou vendo
nojosamente cobrir o leito da governação. Não; pela minha parte eu não
presto esse tributo à República. Nunca também o prestei aos políticos
monárquicos, de cujos partidos nunca fiz parte, a cujo funcionalismo
nunca pertenci, aos quais nunca absolutamente pedinchei o que quer que
fosse.
Sabe V. que o meu tão modesto lugar na
Academia foi Tomás de Carvalho quem numa noite, no Grémio, há 42 anos,
mo ofereceu, indo eu três dias depois ocupá-lo sem nenhuma outra espécie
de intrometimento da minha parte. AS minhas relações com a família real
datam da minha entrada na Academia. Latino Coelho, secretário, não
querendo pessoalmente levar à assinatura do Rei D. Fernando e mais tarde
do Rei D. Luís os diplomas académicos, delegou em mim, chefe da
secretaria, esse serviço, e assim tiveram princípios os contactos de
recíproco afeto que certamente determinaram o Rei D. Carlos a nomear-me
seu bibliotecário. Seria monstruoso que a essa família, à qual na
prosperidade eu devi as mais expressivas demonstrações de estima, eu
regateasse na desgraça o preito da minha mais saudosa e mais profunda
gratidão.
Pode pois V., Teófilo, continuar a
olhar direito para mim, porque eu continuo orgulhosamente a ser tão
coerente com os meus princípios como V. o tem sido sempre com os seus. O
fim desta minha carta é simplesmente felicitá-lo primeiro que tudo, e
dar-lhe em seguida daquilo que me diz respeito algumas notícias e
informações que — julgo eu — o interessarão talvez.
Domingo passado — faz hoje oito dias —
encontrando-me eu e a minha mulher nesta quinta de uma das minhas
filhas, a força pública invadiu a nossa casa, que V. conhece, nos
Caetanos. As nossas vizinhas de prédio, vendo sentinelas na escada e
dizendo-lhe os agentes da autoridade que iam arrombar a minha porta,
deram-lhes a chave de que eram depositárias, o que obstou ao
arrombamento. Depois de rebuscados todos os apartamentos e telhados do
meu domicílio esses senhores fizeram-me o favor de constatar que eu nem
tinha padres escondidos nem munições de guerra depositadas entre os
móveis, livros e objetos de arte que no meu lar representam a economia
de 50 anos da mais correta existência e do mais imaculado trabalho.
Parece que essa busca tivera por causa a denúncia de que de cima do meu
telhado se haviam disparado tiros sobre as tropas da República! Note,
meu querido Teófilo, que eu nem peço explicações da caluniosa delação de
que fui objeto nem requeiro satisfação do agravo que se me fez. Desejo
apenas informá-lo deste episódio familiar.
Passarei agora a um ponto de mais
importância. Refiro-me à Biblioteca de que fui diretor no Paço da
Ajuda. É claro que, bibliotecário do Rei, pelo seu bolso remunerado como
o haviam sido os meus antecessores Alexandre Herculano e Magalhães
Coutinho, eu nenhum compromisso tenho com o governo, qualquer que ele
seja, sendo à administração da Fazenda da Casa Real que legalmente cabe
intervir na negociação das bibliotecas encorporadas nos bens da Coroa.
Eu nem sequer tenho a quem entregar a demissão do meu cargo, o qual de
facto cessou de existir desde que não há Rei.
A consideração que todavia me merecem
os interesses da civilização e o enternecido amor de velho que me
prendia ao tesouro de que fui guarda levam-me a prestar-lhe a V., chefe
do governo vigente, toda a informação que possa esclarecê-lo acerca da
história, do estado e do destino daquela livraria. Ao ministro do
Interior foram já entregues pelos meus empregados as chaves da casa. Em
meu poder ficou a chave de meu uso assim como das gavetas da minha
secretária, que entregarei a quem me for indicado mediante as
formalidades que se considerem oportunas. Regressei da Suiça, onde
passei mês e meio de férias, no dia 2 do corrente mês; no dia 3 fui
convidado a almoçar em Belém com o presidente eleito da República do
Brasil; a seguir rebentou a revolução, intercetando-me a entrada na
Ajuda. De modo que nunca mais ali voltei depois do meu regresso. A
coleção da Ajuda acha-se porém ordenada de maneira que dispensa
preparos de exposição para qualquer efeito que seja. Todas as estantes,
todas as prateleiras e todos os volumes estão integralmente etiquetados.
Há em cada estante, na divisória mais ao alcance da mão, ao lado
direito, um cartão in-fólio, de debrum verde, contendo a relação
numérica dos livros dispostos em cada estante. O catálogo, quase
completo, e todo ele feito sob a minha direcção, distingue os livros que
pertencem à Coroa e os que são propriedade individual do Rei por virem
das livrarias particulares dos Reis D. Luís e D. Pedro V e haverem sido
adquiridos pelo Rei D. Carlos por meio de tornas aos co-herdeiros por
ocasião do inventário feito por morte de D. Luís.
O catálogo dos manuscritos não está
ainda completamente redigido, mas todos eles se encontram inventariados,
correspondendo a cada peça um correlativo verbete. O inventário, assaz
desenvolvido, dos incunábulos acha-se igualmente redigido e em via de
impressão na tipografia da Academia. Está igualmente impresso (à minha
custa) o catálogo dos manuscritos que figuraram na Exposição da Guerra
Peninsular. Nos quartos de El- Rei D Manuel deve achar-se uma cópia da
correspondência de Junot feita em grande parte por minha própria mão. A
aplicação da modesta receita da Biblioteca — 10$00 rs. mensais — consta
de um livro de caixa, encontrando-se numa das gavetas de que tenho a
chave o saldo do último balanço feito no mês de agosto passado, e na mão
do oficial Jordão de Freitas a importância e o saldo das duas últimas
mensalidades recebidas, agosto e setembro. Situada em lugar tão distante
dos centros de estudo, parece naturalmente destinada esta biblioteca a
vir a ser encorporada, como de fundo especial, na Biblioteca Nacional,
enquanto se não proceda à indispensável e urgente reforma das
bibliotecas e dos arquivos da Nação, com especialização dos depósitos e
sistematização geral por um regime comum de catalogação e de compras.
Como quer porém que seja permita-me, caro amigo, que muito vivamente eu
recomende à sua proteção os meus empregados. Jordão é seu conhecido. O
praticante Guilherme de Almeida é mais do que simples praticante, é um
excelente amanuense. O contínuo Ferreira tem preciosas habilitações para
empregado de qualquer grande livraria: é cumulativamente um tanto
tipógrafo um tanto encadernador e um tanto desenhador e calígrafo. A
reprodução linear das filigranas do papel dos nossos manuscritos, que o
incumbi de fazer, é de grande valor, está executada com muito esmero e
constitui uma coleção única na bibliografia portuguesa. Encarecidamente
Ihe rogo que patrocine o destino destes meus antigos colaboradores,
todos eles com família e sem outros recursos além dos provenientes do
seu emprego na Biblioteca Real. Pela parte que pessoalmente me toca nada
solicito e nada aceitaria se alguma coisa me oferecesse. Emigro sem
armas e quase que sem bagagens para o interior da minha velhice, sendo
minha única ambição acabar recolhidamente no meu canto sem empachar o
caminho nem estorvar ninguém. Afetuoso abraço do seu velho camarada e
amigo,
Ramalho Ortigão