A morte aos 30 anos de idade irá ditar o fim abrupto de uma obra
pictórica em plena maturidade e de uma carreira internacional promissora
mas ainda em fase de afirmação. Amadeo ficaria longamente esquecido,
dentro e, sobretudo, fora de Portugal: "O silêncio que durante longos anos cobriu com um espesso manto a visibilidade interpretativa da sua obra [...], e que foi também o silêncio de Portugal como país, não permitiu a atualização histórica internacional do artista"; e "só muito recentemente Amadeo de Souza-Cardoso começou o seu caminho de reconhecimento historiográfico".
Biografia
Filho de Emília Cândida Ferreira Cardoso e José Emygdio de Sousa Cardoso, Amadeo de Souza-Cardoso nasce em Manhufe, Amarante, "
numa família de boa burguesia rural, poderosa e de muita religião, entre nove irmãos […]
. Seu pai era uma espécie de «gentleman farmer», vinhateiro rico, de espírito prático, desejando educar eficientemente os filhos".
Estuda no Liceu Nacional de
Amarante e mais tarde em
Coimbra. Em 1905 ingressa no curso preparatório de desenho na
Academia Real de Belas-Artes, em Lisboa; e em Novembro do ano seguinte (no dia em que celebra o seu 19º aniversário), parte para
Paris, instalando-se no bairro de
Montparnasse,
famoso ponto de encontro de intelectuais e artistas, onde irá viver
todos os anos de permanência nessa cidade (1907 – 1914). Ao longo desses
8 anos regressará, no entanto, diversas vezes a Portugal para estadias
mais ou menos breves.
Estabelece contacto com outros artistas portugueses a residir em Paris, entre os quais
Francisco Smith,
Eduardo Viana e
Emmerico Nunes. Frequenta os ateliês de Godefroy e Freynet com o intuito de preparar a admissão ao curso de
arquitetura,
projeto que abraça, em parte para responder às expectativas
familiares, mas que acaba por abandonar. Publica caricaturas em
periódicos portugueses como
O Primeiro de Janeiro (1907) e a
Ilustração Popular (1908 – 1909).
O início da sua atividade como pintor data provavelmente de 1907. No
ano seguinte conhece Lucie Meynardi Pecetto, com quem viria a casar-se
sete anos mais tarde. Em 1909 frequenta as aulas do pintor
Anglada-Camarasa na Académie Vitti e mais tarde as Academias Livres.
Em 1910 estabelece uma forte e duradoura ralação de amizade com
Amedeo Modigliani,
Constantin Brancusi e
Alexander Archipenko. Na correspondência para Portugal Amadeo refere-se à sua fascinação por aquilo que denomina por "
pintores primitivos"
(e pela escultura e arquitetura da cristandade); por outro lado,
revela um sentimento artístico já amadurecido, manifestando a sua
oposição ao
naturalismo em favor de opções plásticas exigentes, distanciadas de pressupostos académicos.
No dia 5 de março de 1911
Modigliani e Amadeo inauguram uma exposição no ateliê do pintor português, perto do
Quai d'Orsay, cujo livro de honra é assinado por
Picasso,
Apollinaire,
Max Jacob e
Derain; e no mês seguinte Amadeo participa pela primeira vez numa grande mostra internacional, o XXVII
Salon des Independents, exposição determinante e que dá grande visibilidade ao
cubismo. Nesse mesmo ano conhece
Sonia e
Robert Delaunay e, através deles, Apollinaire,
Picabia,
Chagall,
Boccioni,
Klee,
Franz Marc e
Auguste Macke.
Em 1912 publica o álbum
XX Dessins, onde reúne desenhos desse ano e do anterior que terão grande divulgação na imprensa francesa e portuguesa; participa no
X Salon d’Automne (
Grand Palais), encerrando o seu curto ciclo expositivo em Paris. É um dos artistas representados no famoso
Armory Show (
International Exhibition of Modern Art),
Nova Iorque,
1913, exposição que marca a grande viragem modernista no meio
artístico norte-americano: atento ao panorama artístico alemão, expõe
também em
Berlim, no
Erster Deutscher Herbstsalon (Primeiro Salão de Outono Alemão), organizado pela Galeria Der Sturm, em conjunto com artistas maioritariamente associados à "
novíssima pintura", dos
futuristas italianos ao grupo do
Blaue Reiter e ao casal Delaunay. Em 1914 tem trabalhos expostos em
Londres e nos
Estados Unidos da América (
Exhibition of Painting and Sculpture in the "Modern Spirit", Milwaukee Art Society). O seu espírito instável fá-lo passar por "
momentos torturantes de ansiedade".
Durante uma viagem a
Barcelona toma conhecimento do início da
1ª Guerra Mundial
(1914-1918). Regressa a Portugal e a 26 de setembro casa-se com Lucie
Pecetto, fixando residência na Casa do Ribeiro, em Manhufe, que o seu
pai mandara construir. No ano seguinte reencontra Sonia e Robert
Delaunay, que entretanto haviam fixado residência em
Vila do Conde.
Amadeo ocupa o seu tempo entre a pintura, a caça, os passeios a
cavalo, mas o seu isolamento começa a tornar-se difícil de suportar e
faz planos para regressar a Paris. 1916 fica marcado por várias
tentativas falhadas de participação em exposições internacionais; nesse
mesmo ano publica o álbum
12 Reproductions e realiza exposições individuais no
Porto (Salão de Festas do Jardim Passos Manuel) e em Lisboa (Liga Naval, Palácio do Calhariz). O acolhimento crítico, "
num
país pouco acostumado a exposições deste género, em que o modelo dos
salons ainda vigorava, foi sobretudo marcado pela surpresa"; a articulação da montagem, "
as obras exibidas e a internacionalização do artista português causaram espanto generalizado". Durante a estadia em Lisboa convive com
Almada Negreiros e com membros do grupo
Orpheu.
Em 1917 envolve-se em projetos editoriais com Almada Negreiros, publica dois trabalhos na revista
Portugal Futurista (
Farol;
Cabeça Negra),
mas acima de tudo trabalha intensamente, aprofundando o seu universo
pictórico, que expande em novas direções. Anseia no entanto pelo
regresso a Paris, o que não viria a acontecer. No ano seguinte contrai
uma doença de pele que lhe afeta o rosto e as mãos e o impede de
trabalhar. Abandona Manhufe e refugia-se em
Espinho, na tentativa vã de escapar à epidemia de
Gripe Espanhola que se espalha rapidamente e à qual viria a sucumbir, em 25 de outubro desse mesmo ano.
De personalidade algo paradoxal, Amadeo era "
convictamente monárquico"
e poderá ter pertencido – este facto não é mencionado nas publicações
mais importantes sobre Amadeo –, a um movimento conhecido por
Grupo do Tavares, que incluiria, entre outros,
Eduardo Viana,
Almada Negreiros e
Santa Rita.
Obra
O ano seguinte à sua partida para Paris "terá sido um ano de choque",
um ano de revelação, marcando o início da sua atividade como pintor,
embora as suas primeiras pinturas conhecidas datem dos anos imediatos;
trata-se ainda de exercícios, de escala reduzida, "pequenas «pochades» de impressão, como toda a gente fazia",
onde representa interiores de cafés ou paisagens de forma mais ou
menos convencional. Se muitas destas obras revelam hesitação, a lição de
Cézanne informa já algumas das paisagens mais bem-sucedidas.
Maturidade
Em 1910 Amadeo estuda com Anglada Camarasa, "
pintor espanhol de colorido vibrante mas também de algum simbolismo estilizado",
que impulsiona esse momento de crescimento; no ano seguinte a sua obra
começa a revelar verdadeiros sinais de maturidade, num "
estilo precioso e mundano […]
, algo decorativo no seu grafismo estilizado e no seu colorido espetacular, onde se revela a influência […]
do orientalismo luxuoso dos Ballets Russes de Diaghilev", esse "
verdadeiro fenómeno pluridisciplinar que, com as suas danças exóticas e exuberantes […]
transfigurou a paisagem mental de todos os artistas".
Marcado por uma multiplicidade de referências – da longa tradição
erudita da arte Europeia à intensidade hierática da arte primitiva
Africana; da linearidade sofisticada das gravuras e aguarelas japonesas
às ruturas formais e concetuais do cubismo e do futurismo –, para
Amadeo, neste momento de consolidação de ideias é igualmente
determinante a amizade e conivência de artistas como
Modigliani ou
Brancusi. É neste quadro de referências que surgem pinturas como
Saut du Lapin (Salto do Coelho) ou
Os galgos, 1911, e o álbum de 20 desenhos que irá publicar no ano seguinte, com o seu pendor marcadamente decorativo "
em que assomam ainda ecos do Jugenstil muniquense", e onde procura afirmar a sua identidade, gráfica e pessoal, revendo-se em memórias ou fantasias e projetando a "
construção de alguns cenários mais adequados à sua mitologia pessoal. […]
Amadeo é um cavaleiro veloz, um caçador com galgos e falcões, que atravessa a galope as suas montanhas em Manhufe […]
até chegar a sua casa, que se perspetiva como um castelo no cimo de uma hierarquia de colinas" (ver, por exemplo,
Les Faucons, 1912).
Em 1912 participa no
Salon de Independents e no
Salon d’Automne com um "
conjunto
de obras, sedutoras no tempo pelo uso de uma moderada técnica cubista,
temperada com os arabescos decorativos de um imaginário singular,
visualmente muito apelativo" (e onde se sente uma vontade de
representar o movimento que poderá talvez relacionar-se com os
princípios do manifesto futurista). Em obras como
Avant la Corrida, 1912 – exposto no
Salon d’Automne e no
Armory Show
–, Amadeo procura um caminho singular através de aspetos temáticos
menos comuns e de soluções formais algo híbridas que o associam a
movimentos artísticos díspares, "
aproximando-se deliberadamente das margens alternativas dos respetivos programas". A sua participação com trabalhos deste tipo no
Armory Show, 1913, irá ser um sucesso do ponto de vista comercial. Das 8 pinturas expostas, são vendidas 7, três das quais –
Saut du Lapin, 1911;
Chateau Fort, c. 1912;
Paysage,
1912 -, a Jerome Eddy, autor do primeiro livro em inglês sobre o
cubismo. A opinião deste importante colecionador fixará, por muitos
anos, a análise interpretativa da obra de Amadeo "
nesse período, brilhante e sofisticado, mas ainda distante de futuros desenvolvimentos".
Paralelamente, vemo-lo trabalhar a paisagem em obras onde o sentido
predominantemente linear cede o lugar a um outro tipo de plasticidade,
numa reaproximação à sensibilidade impressionista que evolui rapidamente
para obras totalmente abstratas: "
Entre um jogo geométrico de
relevos (de lembranças cézanianas) e um ritmo colorido de massas de
arvoredo, Amadeo avança para soluções de progressiva indiferenciação,
como se essas massas densas perdessem a sua referência à realidade, para
se transformarem em exclusivas soluções formais". Irá radicalizar a sua abordagem, aproximando-se de forma mais explícita da decomposição cubista (como na famosa
Cozinha da Casa de Manhufe,
1913), que noutras pinturas será tratada através de um cromatismo
aberto mais próximo de Delaunay (veja-se, por exemplo, Título
desconhecido –
Les Cavaliers, c. 1913); e tematicamente oscila
entre caminhos diversos, com as alusões figurativas – à figura humana, à
natureza-morta ou à paisagem –, a alternar com obras estritamente
abstratas como, por exemplo, Sem título, 1913.
Em 1914 expõe trabalhos em Londres e Berlim, o que indicia um desejo de
encontrar novas vias de internacionalização. A participação no
1º Salão de Outono
(Herbstsalon) organizado pela Galeria Der Sturm, é particularmente
significativa da sua ligação ao polo de difusão berlinense. "
O
dramatismo e a intensa espiritualidade que forma a personalidade do
artista, não podem ser excluídos do seu envolvimento com o movimento
expressionista e com as sensibilidades estéticas que com ele se cruzaram […]
.
Coincidindo sensivelmente com a cronologia da sua passagem expositiva
pela Alemanha, Amadeo desenvolveu várias séries de trabalhos […]
de intenso diálogo com os conteúdos, formais e teóricos, dos expressionismos do seu tempo"
(é o que acontece de forma explícita com um conjunto de cabeças, ou
máscaras, datado de 1914, que remete, também, para as explorações
pioneiras de Picasso em torno das máscaras africanas). E será esta,
afinal, uma das principais linhas unificadoras da sua obra
plurifacetada. Mesmo quando os caminhos formais apontam noutras
direções, "
a sua alma de expressionista, esquiva a classificações e a modelos rígidos, individualista, inquieta e dissonante […]
sustenta o desenvolvimento do seu trabalho", atravessando todas as fases, desde as primeiras paisagens até ao seu modo final.
O diálogo com as vanguardas do início do Século XX será o grande motor
por detrás da obra de Amadeo, mas há fatores determinantes de outra de
outra ordem e que se prendem com um universo temático marcado por
referentes pessoais. Numa carta dirigida à sua mãe em 1908, o pintor
lamentava a ausência de "
um forte meio da arte" na sua terra natal, mas queixava-se igualmente da "
atmosfera parda" ou o "
sol anémico" de Paris, que contrapunha ao seu "
Portugal prodigioso, país supremo para artistas". Segundo Helena Freitas, "
o alimento espiritual de Amadeo é também a iconografia da sua terra e das suas tipologias".
Na sua pintura encontramos alusões a essa luz diferente; ao sol, às
montanhas, às azenhas e moinhos; aos alvos das barracas de feira; às
canções, bonecos e figuras populares… (veja-se, por exemplo,
Canção Popular - a Russa e o Figaro, c. 1916).
Obras finais
Regressa a Portugal após tomar conhecimento da eclosão da 1ª Guerra Mundial (1914-1918): "este virar de página vai transtornar definitivamente os seus projetos e fechar para sempre o seu livro de viagens".
Isolado no norte do país, remetido para uma zona periférica de um país
já de si periférico, esse isolamento é apenas mitigado pelo
intercâmbio com Eduardo Viana, com Sonia e Robert Delaunay (então a
residir em Portugal), e por brevíssimos contactos com elementos do
chamado grupo futurista português. Vive esses últimos anos – o seu
período de "maior energia e criatividade individual" –, num
frenesim criativo, sonhando com a participação em mostras
internacionais (que nunca se concretizam) e com o regresso, sempre
adiado, a Paris. "Neste trabalho, sabiamente manipulador de uma
memória seletiva, estão presentes os sinais de maturidade do artista na
escolha do seu caminho. Mas é um caminho solitário e desamparado". E
essas obras notáveis, onde desenvolve pesquisas consonantes com a de
autores máximos das vanguardas da época – dos cubistas aos membros da
vanguarda russa –, ficarão praticamente esquecidas da historiografia
internacional da arte.
Os últimos trabalhos de Amadeo, datáveis de 1917, "são o núcleo mais consistente e poderoso da sua afirmação como artista". Nestas obras reforçam-se as associações inesperadas, alógicas, "ao
mesmo tempo que se adensam e complexificam os processos técnicos, na
espessura e materialidade das tintas misturadas com areias e outros
agregantes, nas colagens, nos trompe-l’oeils e suas simulações".
Partindo de um princípio gerador baseado na fragmentação cubista, irá
integrar na pintura elementos iconográficos típicos desse movimento (dos
instrumentos musicais à palavra escrita), fragmentos apropriados da
vida real (madeira, espelhos, ganchos de cabelo, etc.), representações
de partes do corpo ou de produtos contemporâneos produzidos
industrialmente (como uma máquina registadora), e formas totalmente
abstratas… Essa diversidade aparentemente incongruente é gerida de forma
magistral, "num jogo combinatório poderoso e de uma energia plástica rara" que coloca essas obras a par das pinturas mais notáveis suas contemporâneas.
Embora a "notoriedade do seu percurso expositivo e […] integração no contexto internacional dos diálogos de vanguarda"
o coloquem no centro da revolução que atravessou o mundo das artes nas
primeiras décadas do século XX, a origem de Amadeo num país pequeno e
periférico, a sua morte prematura e inconstância estilística, "camaleónica",
criaram sérias dificuldades ao seu reconhecimento. Mesmo em Portugal,
depois da sua morte, ocorreu um longo hiato até que a sua obra merecesse
a devida atenção; e apenas em 1983, com a inauguração do Centro de
Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, se tornou finalmente
possível um acesso real e permanente a obras de referência como Título
desconhecido (Entrada), ou Título desconhecido (Coty), 1917.