A figura do bispo portuense é emblemática, não só por ter pago com dez
anos de exílio (1959-1969) o seu amor à verdade, a sua fidelidade à
doutrina social da Igreja, mas por ser um grande homem do pensamento
português, pela inovação com que lê a tradição nacional. O ter aliado a
intervenção da reflexão com a vivência do testemunho guindam o perfil da
sua estatura moral a um nível fora do comum. Faz doutrina ao longo de
quase quarenta anos, variando de temas segundo a realidade que tinha
diante e a partir das referências da renovação da doutrina cristã, desde
Pio XII ao Concílio, desde S. Tomás a Rahner. Reflete, como poucos, o
carácter ético da busca da verdade, em diálogo e confronto com os
grandes “mestres da suspeita” como Nietzche, Marx e Freud.
Homem livre, configurando a liberdade em referência ao Absoluto,
defende os direitos humanos em tom profético, com intransigência de
génio. Entusiasma-se com o II Concílio do Vaticano e percebe as
resistências interiores à mudança de perspetiva, exigida pelo fim do
constantinismo. A dimensão sócio-política das suas reflexões integra-se
perfeitamente e unicamente na missão pastoral da Igreja. Foi sempre
impulsionado pelo dever de bispo que D. António abriu caminho a um
diálogo com a cultura contemporânea, consciente e atento observador das
suas manifestações concretas no viver da sociedade. O diálogo crítico
que entabulou com a modernidade partiu da novidade do evento Jesus
Cristo, pela ligação entre história e Revelação acontecida nele. Ao
caminhar para uma civilização de liberdade e de amor, como meta da
história, estava ciente do mundo ecuménico e pluralista e lançava pontes
para uma relação entre cultura e transcendência.
O Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, nasceu na freguesia de
Milhundos (Penafiel) a 10 de maio de 1906. Milhundos é uma pequena terra
rural atravessada por um riacho, o Cavalum, que dá fertilidade às
breves encostas companheiras do seu percurso. António era o
quarto de nove filhos de Manuel Ferreira e Albina Rosa de Jesus,
lavradores abastados do lugar da Quintela, que teve educação firme,
solidificada na disciplina e pautada pela honra. Entrou para o Seminário
a 16 de outubro de 1916. O facto de ter um tio padre e cónego
motivava-o para abraçar a vida de serviço à Igreja. Acabaria os estudos
filosófico-teológicos em Roma, na Universidade Gregoriana, entre 1925 e
1928. Aos 22 anos é presbítero (22 de setembro de 1928), sendo ordenado
na Torre da Marca, por D. António Augusto de Castro Meireles. É logo
depois nomeado prefeito e diretor de disciplina no Seminário de Vilar.
Por impedimento do seu tio, Cónego Ferreira Gomes, em 1936 iria ser
vice-reitor com funções de Reitor. Em junho de 1936 é feito cónego da Sé
do Porto, juntamente com Manuel Valente e Sebastião Soares de Resende.
Foi, então, o exigente professor de filosofia, firmado no seu
imperturbável pensamento, seguido com temor e espanto pelos alunos. A
ele se deve a colocação de duas máximas nas paredes do Seminário de
Vilar: “De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens” e “Fostes
resgatados por grande preço, não queirais tornar-vos servos dos homens”
(1Cor 7, 23). A vinda para o Porto de D. Agostinho de Jesus e Sousa, em
agosto de 1942, depois dos problemas atribulados surgidos na diocese,
foi ocasião para relações de colaboração cordial entre o diretor de
Vilar e do novo bispo portucalense.
Em 15 de janeiro de 1948, Ano da Proclamação da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, dos quais foi insistente defensor, o Papa
nomeia-o bispo e coadjutor de Portalegre, com direito a sucessão. É
ordenado na Sé do Porto a 2 de maio de 1948, dia de Santo Atanásio de
Alexandria. Coincidência imprevisível de exilados! Preside à celebração
D. Agostinho de Jesus e Sousa, sendo ladeado por D. António Valente da
Fonseca, bispo de Vila Real e D. Manuel Maria Ferreira da Silva, bispo
titular de Gurza. Tomou posse a 25 de maio. Pela morte de D. Domingos
Frutuoso, a 6 de junho de 1949, é nomeado Bispo de Portalegre e aí
prossegue o contacto com a realidade do Alentejo que estuda, como
testemunha o seu então secretário particular, P. José Geraldes Freire
(ver Voz Portucalense, de 18 de março de 1982); o outro secretário seria
o P. Elias Lopes, que o acompanharia durante alguns meses no Porto. De
facto a experiência alentejana iria durar pouco. A sua sensibilidade
para com os problemas sociais vem ao de cima desde a primeira hora,
perante a situação do proletariado alentejano. Sonhou constituir uma
associação agrária de inspiração cristã, com base na doutrina social da
Igreja, para apresentar soluções para os graves problemas aí vividos e
juntamente com as necessidades económicas atender aos valores morais. O
proprietário e engenheiro agrónomo José Pequito Rebelo, lançou em março
de 1949 um apelo ao novo bispo para que se fizesse defensor da criação
de uma irmandade dos proprietários alentejanos de Lisboa, junto dos
bispos vizinhos de Évora e Beja. António Ferreira Gomes contrapõe razões
à ideia de Pequito: era o bispo mais novo para tomar iniciativas em
todo o Alentejo, tinha prioridades pastorais como a construção do
Seminário, a associação não devia valorizar os absentistas. Perante esta
resposta Pequito advoga que não vale a pena deitar mãos à criação da
associação como D. António a concebera. De facto a ideia foi sendo
trabalhada. Em 1951, nasce a Ação Católica Agrária, animada pelo
engenheiro Nuno Vaz Pinto e cria-se uma Fraternidade Operária,
inaugurada a 8 de abril de 1951, com operários de toda a diocese. Os
poucos anos de contacto com as gentes do Alentejo foram suficientes para
criar no bispo um carinho e um apreço muito especiais.
A 13 de julho de 1952 é nomeado bispo do Porto. Toma posse por
procuração a 14 de setembro e entra solenemente no dia 12 de outubro,
uma vez que continuou como Administrador Apostólico de Portalegre até à
tomada de posse do sucessor, D. Agostinho Lopes de Moura, a 2 de maio de
1953. De 1952 a 1958, o bispo do Porto notabilizou-se pela atenção à
miséria social do povo português, pela critica do corporativismo do
Estado e pela exigência de livre expressão do pensamento e da ação
política (célebres discursos aos jornalistas, no dia de S. Francisco de
Sales).
A seguir à campanha do General Humberto Delgado para a Presidência da
República tornou-se conhecido o pró-memória, enviado pelo bispo do
Porto a Oliveira Salazar, para anteceder uma conversa que este desejou. É
conhecida erradamente como Carta a Salazar (13 de julho de 1958). Ao
terminar o Pro memoria para uma conversa com Salazar, o bispo do Porto
lançou quatro perguntas relativas às possíveis objeções que o Estado
teria à ação da Igreja e dos católicos. Com estas questões não pretende
qualquer favor e declara: “antes, pelo contrário, penso que se não
forem capazes de aguentar o desfavor e a animosidade do Poder, pouco
podem merecer o respeito e a liberdade. Apenas sugiro e peço, mas isso
com toda a nitidez e firmeza, o respeito, a liberdade e a
não-discriminação devidos ao cidadão honesto em qualquer sociedade
civil.” (Gomes - D. António, pp. 139)
Começou a circular, devido a inconfidências de um amigo de D. António e
de um ministro de Salazar. Causou grande polémica nos jornais, às vezes
bem reveladora do fanatismo vulgar de alguns espíritos. Certo é que,
saindo do país a 24 de julho de 1959, por ser aconselhado a retirar-se
uns tempos para férias, é depois proibido de entrar. Vê-se forçado a um
exílio de dez anos, iniciado em Vigo e depois continuado em Santiago de
Compostela, Valência, onde colabora na ação pastoral, Lourdes,
Ciudad Rodrigo e Salamanca. Neste locais recebe frequentes visitas de
amigos e apoio da diocese do Porto, que soube ser fiel e digna, no exílio
do seu bispo.
Durante o Concilio está em Roma, é membro da Comissão dos Seminários e
Estudos, e participa na aula conciliar com intervenções de interesse,
relativas ao esquema dos bispos, do ecumenismo, da Igreja no mundo e da
liberdade religiosa (1963-1965), talvez esta a mais pertinente.
Juntamente com o portuense D. Sebastião Soares de Resende, tem as
intervenções mais relevantes da débil presença portuguesa no II Concilio
do Vaticano.
No ano de 1969, devido a diligências da ala liberal, em colaboração
com padres diocesanos atuantes junto da Nunciatura, Marcelo Caetano
autoriza a sua entrada em Portugal. Agora é o esforço de retomar e de
redescobrir a diocese e de a reestruturar no estilo do Concílio. A sua
preocupação dominante de pastor foi a doutrinação e a criação de
organismo de correspondência eclesial.
Não deixa de ser uma figura incómoda e polémica. São exemplos: a
presença no julgamento do Padre Mário Pais de Oliveira, nos dias 7 e 8 de
janeiro de 1971, a homilia da paz de 1972, quando fala da teologia da
guerra e inclui referências à «virtudes militares» dos capelães, o
interdito à paróquia de Mozelos, no dia 1 de janeiro de 1974. A mesma
linha ética se manteve após o 25 de abril do mesmo ano. Enfrenta a nova
situação com a coragem merecida por uma coerência granítica. É um
período de escrita singularmente fecundo. O diálogo com a cultura
moderna será o seu tema central desde 1976, até ao fim. Isto após os
esclarecidos avisos aos portugueses, com apelos à tolerância e a
denúncia dos novos perigos pós-revolucionários. Dentro da Igreja, a
crítica aos cristãos pelo socialismo demonstrou o homem da fidelidade à
memória doutrinal da Igreja (ver Cristianismo, Liberdade e Socialização,
in Igreja e Missão, 75/76 (1975; pp. 305/330). A partir de 1978 notam-se
algumas reações do clero com posições mais irrequietas e radicais. Nos
anos oitenta diminuem os momentos de intervenção.
Começa o reconhecimento público e oficial. É agraciado em 7 de agosto de
1980, com a Grã-cruz da Ordem da Liberdade e a 20 de maio de 1982 é
homenageado na Assembleia da República. Escolhe mais uma vez, o dia 2 de
maio de 1982 – passados trinta e quatro anos da sua ordenação
sacerdotal – para se despedir do seu rebanho do Porto e ir viver para a
Quinta da Mão Poderosa, casa da diocese em Ermesinde. Aí viveu
discretamente e morreu serenamente. Aí escreveu as Cartas ao Papa e
previa escrever um volume de Provas, mas a falta progressiva da visão e a
morte do Secretário, o cónego Rebelo, fizeram-no desistir. Em 1986 esteve
presente na RTP, onde afirmou em longa entrevista: «eu professo que
Deus é o Senhor da História e que a História tem sentido».
Deixou testamento, redigido em 21 de agosto de 1977. Testemunha o
desprendimento nobre e a pobreza essencial que nortearam a sua vida e
revela a criação da Fundação Spes, com fins benéficos, educativos e
culturais. Nenhum dos seus escritos foge ao carácter pastoral. Não
escreveu tratados temáticos nem manuais. O conjunto da sua obra
proporciona critérios bem alicerçados para os ouvintes ficarem
habilitados no discernimento da realidade e da história segundo os
princípios do humanismo personalista cristão. Uma ou outra vez acedeu a
insistências para escrever textos introdutórios. Um deles é a Saudação
para a Lusitania Sacra (1 - 1956; pp. 7-15). Aqui critica o historicismo como
naufrágio da história, lança alguns desafios para o fazer de uma
«história arquitetónica», como combinação de ciência, arte e filosofia.
A História devia chegar a «disciplina total», compreender e respeitar a
tradição por consideração para com a vida e traçar visões panorâmicas
de conjunto, irradiar uma profunda filosofia da história.
Várias vezes desenhou perfis com a densidade própria da visão
alargada, que é seu timbre. É o caso, por exemplo, de D. António Barroso
e de D. António Castro Meireles. O drama Herói e Santo (1931) sobre a
vida do beato Nuno é a sua estreia literária. Se é falho de valor
dramatúrgico, embora escrito com intenção pedagógica para os alunos do
Seminário, quer, já então, sugerir uma nova interpretação do
Condestável, levantada de novo em Coimbra em 1974. D. António teve pena
que ninguém lhe confirmasse ou rebatesse a tese sugerida. Uma
conferência, pronunciada na sede da Justiça e Paz de Coimbra, tem por
título: Os direitos do homem na tradição portuguesa antiga. É um
contributo para conhecer melhor a tradição cristã em Portugal. O longo e
belo Pórtico à 3ª edição (1969) dos Contos Exemplares de Sophia de Mello
Breyner é uma profunda e erudita reflexão de teor histórico. Considera o
bispo que Sophia chega à verdade não pela via platónica grega, mas pela
paixão invoca o mistério e a transcendência do ser humano, ao modo
católico.
A distância do tempo ajudará a estabelecer a verdadeira estatura
deste vulto. Para tal contribuirá a publicação de textos que a Fundação
Spes tem vindo a dar à luz. Uma estátua do escultor Arlindo Rocha foi
colocada em frente da Torre dos Clérigos, ex-libris do Porto. Outra
obra, da escultora Irene Vilar, comemora a presença do ilustre prelado
na sua terra natal. O discurso de D. António Ferreira Gomes «entre
Revelação/Tradição e Modernidade/História» (A. Pinho), ficará em
amálgama com o testemunho vivido em nobre serviço à liberdade superior
do homem, a interpelar o presente. A concluir fiquem, por isso, as suas
próprias palavras: «O homem existe, cumpre-se e pensa-se na história. E a
história não existe, faz-se. É o homem que a faz e escreve; mas também é
ela, feita e escrita, que faz o homem…». Assim quisemos.
Perante a pergunta: “seremos nós os homens do fim?” (Cartas, pp. 139), o
Bispo de Portalegre e do Porto assume uma atitude de profissão de fé
nestes termos: “Penso e creio que a História tem um sentido, que o tempo
é um dom de Deus e que os sucessivos avatares de encarnação [...] são
passos [...] que sustentam o templo de Deus altíssimo” (Cartas, p.147).
Ou mais adiante: ”cremos e professamos que o Bem supera o mal, que onde
abundou o pecado superabundou a Redenção e que no fim o Bem triunfará. É
isto que dá sentido à história” (Cartas, p. 148). Aceitou livremente a
morte com plena lucidez, a 13 de abril de 1989. Também no seu fim adere à
realidade e vive o último traço do seu itinerário com pleno humanismo
cristão.
Funeral de D. António Ferreira Gomes em 1989