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terça-feira, outubro 04, 2022

Poesia para celebrar o dia dos meus seres vivos favoritos...

(imagem daqui)
  
   
Os cães

Os cães, tantos. Sem cuidarem
da torpeza
lambem as nossas mãos.

Misteriosa religião a deles.
O rosto do seu Deus não temem
e contemplam lado a lado.

Nem a Moisés tal foi consentido.


 

in A Ignorância da Morte (1982) - António Osório

sábado, setembro 17, 2022

Poema para celebrar o aniversário de um Botânico...

(imagem daqui)

 

Amor das plantas e dos doentes

Campô de capuchinha
o seu vermelho
não é o das terríveis paixões humanas,

o da urtiga branca
não fere esta pedinte
(cancerosa) de misericórdia,

o dourante da camomila
torna o cabelo das crianças
inutilmente mais claro,

este de quinina,
lavandisca, vinda do mar
por bem, só por bem sulfuroso,
e as pequeníssimas
centáureas azuis
que do céu alcançam a cor mais límpida.

Champô de folhas de nogueira
que desgrisalham (reavivam?)
e servem talvez aos meus bichos-da-seda
(nunca duram muito, os calvos budas).

Quero às plantas urdindo
desprezadas flores nesta cidade
de gente completamente infeliz.
  
  
in O lugar do Amor (1981) - António Osório

segunda-feira, agosto 01, 2022

O poeta António Osório nasceu há 89 anos...

(imagem daqui)

António Osório, nascido António Gabriel Maranca Osório de Castro (Setúbal, 1 de agosto de 193318 de novembro de 2021), foi um escritor e poeta português, com antepassados galegos e italianos (com raízes corsas e florentinas). 

Filho de pai português e de mãe italiana, o seu pai era sobrinho paterno da escritora Ana de Castro Osório.

Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (1956).

Era o poeta do amor e da fulguração, dos afectos e dos silêncios, embora tivesse começado a escrever em 1954, como colaborador da revista Anteu, apenas na década de 1970 começa a publicar a sua poesia em livros. Colaborou com Manuel Cargaleiro, Júlio Pomar e Pedro Cabrita Reis, que ilustraram algumas das suas obras. Dirigiu, com José Bento, um suplemento de poesia no Jornal de Letras e Artes.

Poeta e advogado em Lisboa, foi, na Ordem dos Advogados, vogal do conselho distrital de Lisboa, vogal e vice-presidente do conselho geral (1978-1980), vogal do conselho superior (1981-1983), Bastonário (1984-1986) e diretor da Biblioteca da Ordem dos Advogados (1995-2002). Foi administrador da Comissão Portuguesa da Fundação Europeia da Cultura e presidente da Associação Portuguesa para o Direito do Ambiente (1994-1996), qualidade na qual fundou e dirigiu a Revista de Direito do Ambiente e do Ordenamento do Território (1995-2002). A partir de 1998, foi diretor da revista Foro das Letras, editada pela Associação Portuguesa de Escritores-Juristas. Foi, entre 4 de março de 1999 até à sua morte, sócio correspondente nacional, na Classe de Letras, na 1.ª Secção – Literatura e Estudos Literários, da Academia das Ciências de Lisboa.

Em 1980, foi escolhido pelo governo de Portugal para representante na Convenção da Haia e, em 1985, para árbitro do Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos. Em 1985, fundou o Instituto Jurídico Franco-Ibérico de Bordéus, em França. Entre 1988 e 2001, foi administrador da Associação Internacional de Juristas de Língua Italiana, que fundou. Em 2003, foi nomeado Presidente da Delegação Portuguesa do Tribunal Europeu de Arbitragem, em Estrasburgo (França).

Era membro do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, no Rio de Janeiro (Brasil), e da Conférence des Grands Barreaux d'Europe.

Morreu a 18 de novembro de 2021.
   
Obras
  • A Raiz Afectuosa (1972)
  • A Mitologia Fadista (1974)
  • A Ignorância da Morte (1978)
  • O lugar do Amor (1981)
  • Décima Aurora (1982)
  • Adão, Eva e o mais (1983), com ilustração de Manuel Cargaleiro
  • Planetário e Zoo dos Homens (1990)
  • Inquirição=Enquete (1991), com ilustração de Pedro Cabrita Reis
  • Ofício dos touros (1991), com ilustração de Júlio Pomar
  • Casa das Sementes (2006)
  • A Luz Fraterna (2009)
 
  

 

Amor das plantas e dos doentes

Campô de capuchinha
o seu vermelho
não é o das terríveis paixões humanas,

o da urtiga branca
não fere esta pedinte
(cancerosa) de misericórdia,

o dourante da camomila
torna o cabelo das crianças
inutilmente mais claro,

este de quinina,
lavandisca, vinda do mar
por bem, só por bem sulfuroso,
e as pequeníssimas
centáureas azuis
que do céu alcançam a cor mais límpida.

Champô de folhas de nogueira
que desgrisalham (reavivam?)
e servem talvez aos meus bichos-da-seda
(nunca duram muito, os calvos budas).

Quero às plantas urdindo
desprezadas flores nesta cidade
de gente completamente infeliz.
  
  
in O lugar do Amor (1981) - António Osório

Porque é dia de recordar um grande Poeta...

(imagem daqui)
  
Os loucos
 
Há vários tipos de louco.
O hitleriano, que barafusta.
 
O solícito, que dirige o trânsito.
O maníaco fala-só.
 
O idiota que se baba,
explicado pelo psiquiatra gago.
O legatário de outros,
o que nos governa.

O depressivo que salva
o mundo. Aqueles que o destroem.

E há sempre um
(o mais intratável) que não desiste
e escreve versos.

Não gosto destes loucos.
(Torturados pela escuridão, pela morte?)
Gosto desta velha senhora
que ri, manso, pela rua, de felicidade.
  

 

in A Ignorância da Morte (1978) - António Osório

sábado, julho 30, 2022

Poema para celebrar uma data...

(imagem daqui)

   
 

Elegia para Mário Quintana, vivo

Antes que escape
e não adivinhe o exacto momento,
antecipo-me a Sua Ex.ª
e auguro-lhe, tarde, a vida eterna.

Já agora, continue os seus
Apontamentos de História Sobrenatural:
por porta travessa faça chegar
o Manual do Perfeito Abismo.

E fale dessa história obsessiva
do cricrilar dos grilos
(parecido com o cantarolar
dos seus vermes?)

Diga ao menos se conseguiu
encontrar Botticelli,
de quem o senhor descende:
entreajudem-se.

E, se a coisa o não embaraçar,
ilumine-nos com a enormidade
da sapiência divina.
Peça-lhe (é preciso audácia
com Deus) que assine
a sua ordem de expulsão
– e volte, gestante,
pelo túnel de outra vida.

  
  
in A Ignorância da Morte (1978) - António Osório

sexta-feira, julho 29, 2022

Poesia para recordar evento nesta data...

Autorretrato com Orelha Enfaixada e Cachimbo, 1889   
   
  
A CABEÇA LIGADA
    
La pintura è una poesia che si vede
Leonardo

    
Van Gogh, queria algo
tão consolador como a música.
   
Os campos de trigo e centeio
com ciprestes, os seus obeliscos,
e lírios e grandes nuvens,
a sesta dos camponeses,
a natureza morta
de girassóis e anémonas,
o sereno bivaque de ciganos,
as árvores com o azul tisnado do céu,
loendros, paveias,roçadores
de pastagens limão ouro pálido,
o semeador ferruginoso de ocre,
enxofre e do tamanho de uma catedral,
o voo de corvos sobre ramos
luminosos e ternos
de amendoeiras em flor.
    
Depois de cortar a orelha
retratou-se com os lábios
pintados de sangue.
Se o sofrimento fosse mensurável,
naquela cara de símio
louco de ser homem
haveria dores
de um inteiro campo de concentração.
 
     
   
in
A Ignorância da Morte (1978) - António Osório

quarta-feira, julho 20, 2022

Poesia adequada à data...

  

 

Lua inacessível

................1

E aí os astronautas:
finalmente
os anjos
que há milénios
quisemos ser.


................2

Lua inacessível

Sem mortos
e imensa mortalha.

Reserva, móvel
do nada.


................3

Chuva de crateras,
planaltos de poeira
chão
que nem vermes
produz.


................4

Meteorito infeliz.

Coisa pedregosa

rápida
que caiu

e não acerta,
não aleija
nada.


................5

Poesia - branco
escafandro
meu
sobre a Terra.



................6

Pardas cinzas
sem células,
sem escamas,
sem vestígios
carnívoros.

Cinzas
sem morte dentro,
mortas por fora.



................7

Resta-nos confiar em Vénus.



................8

Tão alto, tão longe
chegados
e não encontram Deus:
apenas falam
com o seu planeta.



................9

Radícula, sangue
que em segredo existisse:
ser a tua
cápsula sofredora.



..............10

Maravilhoso corpo nu
o da Terra.

Curvos continentes
estendidos ao Sol,
nuvens, tempestades
que fogem
................e de tão longe
oceanos, minúsculas
montanhas reconhecíveis,
Himalaias proscritos.

Os próprios seres
invisíveis
se adivinham
aqui em nossa casa.



in A Raiz Afectuosa (1972) - António Osório

terça-feira, julho 05, 2022

Poema (e foto) adequados à data...

Berlenga - foto Fernando Martins

 

Cântico das Criaturas
 

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
a ti o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.
A ti só, Altíssimo, se hão-de prestar
e nenhum homem é digno de te nomear.

Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão Sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumias.
E ele é belo e radiante, com grande esplendor:
de ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas:
no céu as acendeste, claras, e preciosas e belas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Vento
e pelo Ar, e Nuvens, e Sereno, e todo o tempo,
por quem dás às tuas criaturas o sustento.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Fogo,
pelo qual alumias a noite:
e ele é belo, e jucundo, e robusto e forte.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã a mãe Terra,
que nos sustenta e governa, e produz variados frutos,
com flores coloridas, e verduras.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados aqueles que as suportam em paz,
pois por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal,
à qual nenhum homem vivente pode escapar:
Ai daqueles que morrem em pecado mortal!
Bem-aventurados aqueles que cumpriram a tua santíssima vontade,
porque a segunda morte não lhes fará mal.
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças
e servi-o com grande humildade…

 

São Francisco de Assis 

quinta-feira, maio 05, 2022

Poesia para recordar um Poeta...

(imagem daqui)
      
    
Elegia para Mário Quintana, vivo
  
Antes que escape
e não adivinhe o exato momento,
antecipo-me a Sua Ex.ª
e auguro-lhe, tarde, a vida eterna.
  
Já agora, continue os seus
Apontamentos de História Sobrenatural:
por porta travessa faça chegar
o Manual do Perfeito Abismo.
  
E fale dessa história obsessiva
do cricrilar dos grilos
(parecido com o cantarolar
dos seus vermes?)
  
Diga ao menos se conseguiu
encontrar Botticelli,
de quem o senhor descende:
entreajudem-se.
  
E, se a coisa o não embaraçar,
ilumine-nos com a enormidade
da sapiência divina.
Peça-lhe (é preciso audácia
com Deus) que assine
a sua ordem de expulsão
– e volte, gestante,
pelo túnel de outra vida.
   
      
     
in A Ignorância da Morte (1978) - António Osório

quinta-feira, abril 14, 2022

Porque hoje foi dia de recordar Maiakovski...

(imagem daqui)

    
    
Maiakovski

Aos trinta e seis anos 
um tiro no coração.
Assim
crucificaste
este século.

Emigrante
doutro tempo
acertaste
onde era preciso
tocar,
pôr as mãos,
encontrar o futuro,
Maiakovsk.
  
   
   
in A Raiz Afectuosa (1972) - António Osório

quarta-feira, março 30, 2022

Poesia e pintura para celebrar um grande pintor...

Autorretrato com Orelha Enfaixada e Cachimbo, 1889

 

A CABEÇA LIGADA
 

La pintura è una poesia che si vede
Leonardo


 
Van Gogh, queria algo
tão consolador como a música.
 
Os campos de trigo e centeio
com ciprestes, os seus obeliscos,
e lírios e grandes nuvens,
a sesta dos camponeses,
a natureza morta
de girassóis e anémonas,
o sereno bivaque de ciganos,
as árvores com o azul tisnado do céu,
loendros, paveias,roçadores
de pastagens limão ouro pálido,
o semeador ferruginoso de ocre,
enxofre e do tamanho de uma catedral,
o voo de corvos sobre ramos
luminosos e ternos
de amendoeiras em flor.
 
Depois de cortar a orelha
retratou-se com os lábios
pintados de sangue.
Se o sofrimento fosse mensurável,
naquela cara de símio
louco de ser homem
haveria dores
de um inteiro campo de concentração.

  
 
 
in
A Ignorância da Morte (1978) - António Osório

sábado, março 05, 2022

Porque hoje é dia de celebrar a poetisa Ana Achmatova...

(imagem daqui)


Elegia para Ana Achmatova

Foi em 5 de Março, quase no fim deste Inverno.
Com outra luz gostaria de ter entregue o corpo.

Nevoeiro que nos montes se rasgava, despeda-
çado pelas árvores mais altas, herdara de Emily
Dickinson o deslumbrante hálito sonâmbulo e
de Safo o voo apaixonado.

Safo, Emily Dickinson- duas vezes mortas.

   
  
   
in A Raiz Afectuosa (1972) - António Osório

segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Poesia para recordar um Poeta - II

 (imagem daqui)

 

Sebastião da Gama

I

Aqui, junto a estas árvores
cresceste como a sua melhor sombra,
a mais alta, solícita.

Aqui, na ribeira te olhaste
e ela em ti se banhava
uma, duas vezes,
quando chegavas e partias.

Aqui, a tua serra, marinheiro
deitado ao longo da praia, esperava-te
ao sábado e depois descansava.


II

Terra marítima, teu corpo.
A alegria enferma, abelha-mestra
fora da colmeia, regedora
da doçura, alheia, sua.
Os olhos verdes, Virgem, equinócio
da Primavera dentro
de catorze mil anos.
A tua fala, muro que construías a pedra
desde a origem, torre de babel
da mesma e única língua:
a inexorável limpidez fraterna.
O sorriso, de seis anos, morto aos vinte e sete.
A boina, travessura mordaz, tua
exclusiva defesa. Os alunos à volta,
atrás do sobretudo, cachorros
que amamentavas.
Os livros debaixo do braço, farnel
de poesia ambulante.
A água que bebias da infusa
como um pedreiro, de um jacto,
chegado ao canto esquerdo da boca,
era a tutela, o rim de que sofrias.

Como sempre não se avisa. Jornal
na rua, de chofre, a patada,
relincho, trigo por ladrão gadanhado.
Não te lembraste (nem podias)
de que eu sofreria
enquanto respirasse.
Que devia ter fugido antes
da minha e tua terra,
cobri-la de vergonha,
para não ser um remorso
viver ao pé de ti,
ser a mãe das tuas coisas. 

 

 

in A Ignorância da Morte (1978) - António Osório

segunda-feira, outubro 04, 2021

Poema para celebrar o dia dos Animais...

 

Berlenga - foto pessoal

O leite puro

O mundo devia ser refeito
por alguns santos.
São Francisco de Assis,
a seu cargo as criaturas,
não deixaria que se pervertessem
e o sol poluísse os mortos.
Santo António
falaria aos peixes
e dar-lhes-ia de comer
multiplicando as águas
com o canal dessalgado do abismo.
São João da Cruz
faria o amor
exasperadamente sensual
à semelhança do seu por Deus.
E São João
do Apocalipse simularia
ressuscitar Nossa Senhora
e seu pobre Filho.


in Décima Aurora (1982) - António Osório

sexta-feira, setembro 17, 2021

Poema para um botânico que hoje comemora o seu aniversário...

(imagem daqui)
  
Amor das plantas e dos doentes

Campô de capuchinha
o seu vermelho
não é o das terríveis paixões humanas,

o da urtiga branca
não fere esta pedinte
(cancerosa) de misericórdia,

o dourante da camomila
torna o cabelo das crianças
inutilmente mais claro,

este de quinina,
lavandisca, vinda do mar
por bem, só por bem sulfuroso,
e as pequeníssimas
centáureas azuis
que do céu alcançam a cor mais límpida.

Champô de folhas de nogueira
que desgrisalham (reavivam?)
e servem talvez aos meus bichos-da-seda
(nunca duram muito, os calvos budas).

Quero às plantas urdindo
desprezadas flores nesta cidade
de gente completamente infeliz.
  
  
in O lugar do Amor (1981) - António Osório

Poema botânico para aniversariante de hoje...!

 

(imagem daqui)

 

O apanhador de ervas

Não julga: ele conhece, extrai
e depois entrega ao sol o cardo-santo
e a diabelha, o fel-da-terra
e a sempreviva, a erva do amor
e a do homem enforcado.
  
Seres próximos, opacos, de sua casa,
o campo, por si rebuscados com mão silvestre.
Picado foi pela unhagata e pela silva,
que de si próprias confiaram
o germe sanguinoso e o fluido salutar.
 
Não julga: constante o eflúvio
do gerânio, do sisudo absinto,
viçoso ou seco. Crê na arruda, nesse acre
odor que perfuma bruxas. Caça por cima
o alecrim, será mais forte dentro
 
de breves rebentações vernais. Anda
pela vala real, pródiga de bergamotas
brancas, manjeronas, há quarenta anos.
Destila na caldeira de seu avô
plantas aromáticas, medulares:
 
lume brando, vivaz, de eucalipto, e o suco
perpassando serpentinas de água, vitorioso,
álcool vindo alambique. Leva a merenda,
trinca folhas de menta, tem a elástica
prontidão da vulnerária acorrendo na ferida.
 
Não julga: notória ternura, a sua, pela cavalinha,
ama aquele verde resplandecente e rápido,
até raízes aproveita para doentes
desenganados; servidor augusto de elixires,
procura, amontoando, a bravia erva da vida.
 
 

in Décima Aurora (1982) - António Osório

 

domingo, agosto 01, 2021

O poeta António Osório faz hoje 88 anos

(imagem daqui)

António Osório, nascido António Osório de Castro (Setúbal, 1 de agosto de 1933), é um escritor e poeta português, com antepassados galegos e italianos. É o poeta do amor e da fulguração, dos afectos e dos silêncios. Embora tivesse começado a escrever nos anos 50, apenas na década de 70 começa a publicar a sua poesia em livros. Poeta e advogado em Lisboa, foi bastonário da Ordem dos Advogados entre 1984 e 1986, administrador da Comissão Portuguesa da Fundação Europeia da Cultura e presidente da Associação Portuguesa para o Direito do Ambiente. É desde 1999, sócio correspondente nacional, na Classe de Letras, da Academia das Ciências de Lisboa.
  

 

 

Não é uma coisa só


Não é uma coisa só,

São muitas coisas nuas.

Não é o desabar de uma casa.

É percorrer os seus escombros.

Não é aguardar por um filho.

É voltar a sê-lo.

Não é penetrar em ti.

É sair de mim.

Não é pedir-te que faças.

É fazer-te.

Não é dormir lado a lado.

É estar jacente de mãos dadas.

Não é ouvir vento e chuva.

É franquear-lhes a cama.

E relâmpago que pela terra se funde.

sexta-feira, julho 30, 2021

Poesia para celebrar a data...

(imagem daqui)
   
Elegia para Mário Quintana, vivo

Antes que escape
e não adivinhe o exacto momento,
antecipo-me a Sua Ex.ª
e auguro-lhe, tarde, a vida eterna.

Já agora, continue os seus
Apontamentos de História Sobrenatural:
por porta travessa faça chegar
o Manual do Perfeito Abismo.

E fale dessa história obsessiva
do cricrilar dos grilos
(parecido com o cantarolar
dos seus vermes?)

Diga ao menos se conseguiu
encontrar Botticelli,
de quem o senhor descende:
entreajudem-se.

E, se a coisa o não embaraçar,
ilumine-nos com a enormidade
da sapiência divina.
Peça-lhe (é preciso audácia
com Deus) que assine
a sua ordem de expulsão
– e volte, gestante,
pelo túnel de outra vida.

  
  
in A Ignorância da Morte (1978) - António Osório (2ª Edição, revista - 1982)

quinta-feira, julho 29, 2021

Poesia adequada à data...

Autorretrato com Orelha Enfaixada e Cachimbo, 1889   
   
  
A CABEÇA LIGADA
    
La pintura è una poesia che si vede
Leonardo

    
Van Gogh, queria algo
tão consolador como a música.
   
Os campos de trigo e centeio
com ciprestes, os seus obeliscos,
e lírios e grandes nuvens,
a sesta dos camponeses,
a natureza morta
de girassóis e anémonas,
o sereno bivaque de ciganos,
as árvores com o azul tisnado do céu,
loendros, paveias,roçadores
de pastagens limão ouro pálido,
o semeador ferruginoso de ocre,
enxofre e do tamanho de uma catedral,
o voo de corvos sobre ramos
luminosos e ternos
de amendoeiras em flor.
    
Depois de cortar a orelha
retratou-se com os lábios
pintados de sangue.
Se o sofrimento fosse mensurável,
naquela cara de símio
louco de ser homem
haveria dores
de um inteiro campo de concentração.
 
     
   
in
A Ignorância da Morte (1978) - António Osório

sábado, julho 24, 2021

Poesia para celebrar os heróis da Apollo XI...

  

 

Lua inacessível

................1

E aí os astronautas:
finalmente
os anjos
que há milénios
quisemos ser.


................2

Lua inacessível

Sem mortos
e imensa mortalha.

Reserva, móvel
do nada.


................3

Chuva de crateras,
planaltos de poeira
chão
que nem vermes
produz.


................4

Meteorito infeliz.

Coisa pedregosa

rápida
que caiu

e não acerta,
não aleija
nada.


................5

Poesia - branco
escafandro
meu
sobre a Terra.



................6

Pardas cinzas
sem células,
sem escamas,
sem vestígios
carnívoros.

Cinzas
sem morte dentro,
mortas por fora.



................7

Resta-nos confiar em Vénus.



................8

Tão alto, tão longe
chegados
e não encontram Deus:
apenas falam
com o seu planeta.



................9

Radícula, sangue
que em segredo existisse:
ser a tua
cápsula sofredora.



..............10

Maravilhoso corpo nu
o da Terra.

Curvos continentes
estendidos ao Sol,
nuvens, tempestades
que fogem
................e de tão longe
oceanos, minúsculas
montanhas reconhecíveis,
Himalaias proscritos.

Os próprios seres
invisíveis
se adivinham
aqui em nossa casa.



in A Raiz Afectuosa (1972) - António Osório