Sebastião da Gama
I
Aqui, junto a estas árvores
cresceste como a sua melhor sombra,
a mais alta, solícita.
Aqui, na ribeira te olhaste
e ela em ti se banhava
uma, duas vezes,
quando chegavas e partias.
Aqui, a tua serra, marinheiro
deitado ao longo da praia, esperava-te
ao sábado e depois descansava.
II
Terra marítima, teu corpo.
A alegria enferma, abelha-mestra
fora da colmeia, regedora
da doçura, alheia, sua.
Os olhos verdes, Virgem, equinócio
da Primavera dentro
de catorze mil anos.
A tua fala, muro que construías a pedra
desde a origem, torre de babel
da mesma e única língua:
a inexorável limpidez fraterna.
O sorriso, de seis anos, morto aos vinte e sete.
A boina, travessura mordaz, tua
exclusiva defesa. Os alunos à volta,
atrás do sobretudo, cachorros
que amamentavas.
Os livros debaixo do braço, farnel
de poesia ambulante.
A água que bebias da infusa
como um pedreiro, de um jacto,
chegado ao canto esquerdo da boca,
era a tutela, o rim de que sofrias.
Como sempre não se avisa. Jornal
na rua, de chofre, a patada,
relincho, trigo por ladrão gadanhado.
Não te lembraste (nem podias)
de que eu sofreria
enquanto respirasse.
Que devia ter fugido antes
da minha e tua terra,
cobri-la de vergonha,
para não ser um remorso
viver ao pé de ti,
ser a mãe das tuas coisas.
in A Ignorância da Morte (1978) - António Osório