sexta-feira, agosto 12, 2022

O botânico Jorge Paiva comenta a destruição no mais lindo Parque Natural português...


Serra da Estrela: Quo vadis biodiversidade? 

Jorge Paiva - 12 de agosto de 2022

 

Suponham que se descobria na lagartixa-da-montanha da serra da Estrela, um produto com alguma aplicação medicamentosa, como se descobriu noutro réptil, no lagarto conhecido como monstro-de-gila, que os pastores americanos matavam a tiro.

Há dias tive o prazer da visita de um antigo aluno (António Neves, biólogo), que me disse que em 1980, quando nas aulas eu afirmava que durante o primeiro quarto do século XXI haveria já seca e escassez de água por todo o país, os alunos consideravam que era exagero meu. Também quando eu lhes dizia, e continuo a afirmar, que a serra da Estrela esteve coberta de floresta até ao topo e que estávamos a transformar o nosso país num deserto rochoso, julgavam que era exagero meu.

Com os anuais piroverões que temos tido e continuaremos a ter, pois os governantes que temos tido e temos ainda não se interessam pelo país que estamos a deixar às gerações futuras, as montanhas do Norte e Centro do país são já um deserto rochoso, sem o mínimo de solo para reter alguma das águas pluviais e de biodiversidade quase nula.

Durante a minha vida (curtíssima em comparação com o início da ocorrência da biodiversidade no globo terrestre) conheci animais e plantas que já desapareceram, pelo menos de Portugal. Dou como exemplo o esturjão (Accipenser sturio), cujos últimos exemplares foram pescados no Guadiana pela última vez em 1980 e a orquídea (Epipactis palustris) que eu próprio colhi em 1965 na região de S. Jacinto, uma região protegida.

Com este devastador incêndio, resultante da incúria e incompetência de quem devia proteger o Parque Natural e Geoparque Internacional da Serra da Estrela, há animais e plantas que ficarão em elevado risco de extinção e até poderão ter sido extintas. Dou como exemplo a lagartixa-da-montanha (Iberorolacerta monticola), um endemismo ibérico, e o sapo-parteiro (Alytes obstetricans), já muito raro no planalto superior. Das plantas começo por referir o teixo (Taxus baccata), que não sei se não foram extintos os parcos exemplares do Vale do Zêzere.

Esta árvore, que demora dezenas de anos a atingir o porte arbóreo, pois é de crescimento muito lento, é um excelente exemplo que costumo apresentar aos que pensam que os que se preocupam com a biodiversidade são uns líricos. Os teixos (há oito espécies) produzem taxanas, altamente tóxicas (uma semente, pouco maior do que um grão de arroz, tem taxanas suficientes para matar uma dezena de pessoas), que se utilizam para medicamentos na quimioterapia de cancros.

Outro exemplo é uma pequena planta, um endemismo das altas montanhas do Noroeste da Península Ibérica (Carex lucennoiberica), que, na da serra da Estrela, só ocorre numa pequena área do planalto superior, onde a neve perdura mais tempo, mas que está quase extinta na serra da Estrela. Mas, como agora todos os anos vão lá colocar gado bovino que pisoteia e polui o ecossistema, está em elevado risco de extinção em Portugal. O Instituto da Conservação da Natureza (ICN) está avisado desse risco. Recuso-me a utilizar a sigla ICNF (de Florestas), pois resultou de um dos maiores crimes florestais que os governantes cometeram: a extinção dos Serviços Florestais. No que resultou a ocorrência de devastadores piroverões.

Infelizmente a equipa do ICN é, actualmente, tão reduzida que não tem qualquer capacidade de proteger a Natureza. Há espécies de plantas que só existem no planalto superior da serra da Estrela e em mais nenhuma parte do globo. São a Festuca henriquesii, uma erva que ocorre em prados onde pasta gado, e a Silene foetida foetida, uma plantinha de lindas flores das zonas graníticas do alto da serra da Estrela e que se encontra em elevado risco de extinção.

  

 

O Narcissus asturiensis, endémico da Península Ibérica, esteve dado como extinto na serra da Estrela, mas foi reencontrado

 

Finalmente, apenas para, mais uma vez, realçar a importância de preservar a biodiversidade que ainda existe (já provocámos a extinção de muitas espécies, algumas das quais nunca chegámos a conhecer), apresentamos o exemplo de alguns produtos químicos descobertos recentemente, em animais e plantas e que anda estão na fase experimental: a esqualina (um aminoácido) do fígado do tubarão-galhudo (Squalus acanthias) com alguma eficácia para a Parkinson; a hormona GLP-1 do intestino do ornitorrinco (Ornythorhyncus anatinus) para a diabetes de tipo 2; e a tagitinica C, uma cetona de um malmequer (Tithonia divesifolia) para tratamento da malária.

Suponham que se descobria na lagartixa-da-montanha da serra da Estrela, um produto com alguma aplicação medicamentosa, como se descobriu noutro réptil, no lagarto conhecido como monstro-de-gila (Heloderma suspectum), que os pastores americanos matavam a tiro sempre que o viam. O lagarto, quando mordia as cabras ou as ovelhas, exsudava na saliva um produto (exendina) que fazia com que o pâncreas do gado produzisse muita insulina, acabando por morrerem de hipoglicémia. Actualmente, estão proibidos de andar aos tirinhos ao lagarto e até já está comercializado o medicamento (Byetta) para a diabetes de tipo 2.

E não mencionamos os belos e variados narcisos que ocorrem na serra da Estrela, alguns endémicos, e o maior deles todos, o Narcissus asturiensis, esteve dado como extinto na serra da Estrela, mas, felizmente, foi descoberto num vale de acesso difícil. Isto porque apanhavam os bolbos para exportarem para o estrangeiro. Foi assim que os relvados de Inglaterra se enriqueceram de narcisos, que florescem profusamente na Primavera.

Andamos, realmente, a brincar com o fogo.

 

in Público

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