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segunda-feira, janeiro 31, 2022

Fernando Namora morreu há 33 anos

 
Fernando Namora (Condeixa-a-Nova, 15 de abril de 1919 - Lisboa, 31 de janeiro de 1989) de nome completo Fernando Gonçalves Namora, médico e escritor português, autor de uma extensa obra, das mais divulgadas e traduzidas nos anos 70 e 80.
   

 

A Mais Bela Noite do Mundo 
  
  
Hoje,
será o fim!
 
Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!
  
Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
- Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!
  
- Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!
  
(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).
  
Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua...
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.
  
- Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.
  
Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.
  
(Era esta a voz do papão
que acendia a vela, tinha regaço de sombra
e velava
as noites da minha rua e a minha vida
e pintava-se de belo
na máscara de papelão).
  
Hoje,
será o fim!
  
Hoje,
nem a sombra do que há-de vir,
nem os mestres, nem os amigos, nem os livros,
nem a fragilidade dos meus pés
feitos de barro e cansaço!
Todas as minhas revoltas domadas,
todos os meus gestos em meio
e as minhas palavras sufocadas
terão a sua hora de viver e amar!
  
Hoje,
nem o cadáver a sorrir na morgue,
nem as mãos que ficaram angustiosas,
arrepiadas
no seu medo de findar!
  
Hoje,
será a mais bela noite do mundo!

  
 
 
in Mar de Sargaços (1940) - Fernando Namora

sexta-feira, outubro 15, 2021

Manuel da Fonseca nasceu há cento e dez anos!

(imagem daqui)
  
Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 15 de outubro de 1911 - Lisboa, 11 de março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português.

Biografia
Após ter terminado o ensino básico, Manuel da Fonseca prosseguiu os seus estudos em Lisboa. Estudou no Colégio Vasco da Gama, Liceu Camões, Escola Lusitânia e Escola de Belas-Artes. Apesar de não ter sobressaído na área das Belas-Artes, deixou alguns registos do seu traço, sobretudo nos retratos que fazia de alguns dos seus companheiros de tertúlias lisboetas como é o caso do de José Cardoso Pires. Durante os períodos de interregno escolar, aproveitava para regressar ao seu Alentejo de origem. Daí que o espaço de eleição dos seus primeiros textos seja o Alentejo. Só mais tarde e a partir de Um Anjo no Trapézio é que o espaço das suas obras passa a ser a cidade de Lisboa.
Membro do Partido Comunista Português (PCP), Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
A sua vida profissional foi muito díspar tendo exercido nos mais diferentes sectores: comércio, indústria, revistas, agências publicitárias, entre outras.
Era membro da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta atribuiu o Grande Prémio da Novelística a José Luandino Vieira pela sua obra Luuanda, o que levou ao encerramento desta instituição e à detenção de alguns dos seus membros na prisão de Caxias, entre os quais Manuel da Fonseca.
Em sua homenagem, a Escola Secundária de Santiago do Cacém denomina-se Escola Secundária Manuel da Fonseca e cada uma das bibliotecas municipais de Castro Verde e Santiago do Cacém se chama Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.
  

 

Estradas

Não era noite nem dia.
Eram campos campos campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era hora do poente.
Quase noite e quase dia.

E nos campos campos campos
abertos num sonho quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.

Já de noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.

— Ó nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te haverá de acudir?

Sob este corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.

— Vai te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.

Mas já noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
— como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Aí que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Aí como a boca de Nena
se entreabre fria fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!

Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca…
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos campos campos
abertos de espanto e sonho…

sábado, agosto 07, 2021

Políbio Gomes dos Santos nasceu há cento e dez anos

(imagem daqui)
     
Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 7 de agosto de 1911 - Ansião, 3 de agosto de 1939, foi um poeta português.
Políbio, frequentou o Instituto Militar dos Pupilos do Exército em Lisboa e terminou os seus estudos liceais em Coimbra, tendo aí ingressado na Faculdade de Letras.
Devido a ter adoecido, em setembro de 1938, com tuberculose, esteve internado no Sanatório da Guarda.
Foi um dos colaboradores dos Cadernos da Juventude, da Presença, do Sol Nascente e do O Diabo, assim como fez parte do grupo Novo Cancioneiro, de tendência neo-realista.
Actualmente, existe o Prémio Literário Políbio Gomes dos Santos, em homenagem ao poeta.
  
   
Poema da Voz que Escuta

Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.
 

 

in Voz que Escuta (1939) - Políbio Gomes dos Santos

terça-feira, agosto 03, 2021

O poeta Políbio Gomes dos Santos morreu há 82 anos

(imagem daqui)
      
Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 7 de agosto de 1911 - Ansião, 3 de agosto de 1939, foi um poeta português.
Políbio, frequentou o Instituto Militar dos Pupilos do Exército em Lisboa e terminou os seus estudos liceais em Coimbra, tendo aí ingressado na Faculdade de Letras e Direito.
Devido a ter adoecido, em setembro de 1938, com tuberculose, esteve internado no Sanatório da Guarda.
Foi um dos colaboradores dos Cadernos da Juventude, da Presença, do Sol Nascente e do O Diabo, assim como fez parte do grupo Novo Cancioneiro de tendência neo-realista.
Actualmente ainda existe o prémio literário Políbio Gomes dos Santos, em homenagem ao poeta.
     

Testamento Aberto

Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados,
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados.

Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
À força de querer transpor o além
Da minha porta fechada...

Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma CERTEZA alcanço
E uma mulher me beija.

Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?...
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha...
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?...

E que piedade anda a escrever um frágil,
Na embalagem dos ossos
Que trago emprestados...
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?...

Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
- A minha fragilidade
Foi-me dada
Para me servir.

 

in As Três Pessoas (1938) - Políbio Gomes dos Santos

Poema alusivo à data...

(imagem daqui)

À Memória de Políbio Gomes dos Santos

O poeta que morreu entrou agora,
Não se sabe bem onde, mas entrou,
Todo coberto de demora,
No bocado de noite em que ficou.

As ervas lhe desenham
Seu espaço devido:
Depressa, venham
Lê-lo no chão os que o não tenham lido.

Que o sorriso que o veste
Já galga como um potro
As coisas tenebrosas,
E esquecido – só outro:
Este
Nem precisa de rosas.


in Eu, Comovido a Oeste (1940) - Vitorino Nemésio

sábado, julho 17, 2021

O poeta João José Cochofel nasceu há 102 anos


João José de Melo Cochofel Aires de Campos (Coimbra, 17 de julho de 1919 – Lisboa, 14 de março de 1982), foi um poeta, ensaísta e crítico literário e musical português

 

in Wikipédia

 

Não Desafies

 

Não desafies
a alegria.

Quando ela chegue
um instante só
não lhe perguntes
porquê?

Estende as mãos ávidas
para o calor
da cinza fria. 



João José Cochofel

quinta-feira, março 11, 2021

Manuel da Fonseca morreu há 28 anos

(imagem daqui)
  
Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 12 de outubro de 1911 - Lisboa, 11 de março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português.
  
Biografia
Após ter terminado o ensino básico, Manuel da Fonseca prosseguiu os seus estudos em Lisboa. Estudou no Colégio Vasco da Gama, Liceu Camões, Escola Lusitânia e Escola de Belas-Artes. Apesar de não ter sobressaído na área das Belas-Artes, deixou alguns registos do seu traço, sobretudo nos retratos que fazia de alguns dos seus companheiros de tertúlias lisboetas como é o caso do de José Cardoso Pires. Durante os períodos de interregno escolar, aproveitava para regressar ao seu Alentejo de origem. Daí que o espaço de eleição dos seus primeiros textos seja o Alentejo. Só mais tarde e a partir de Um Anjo no Trapézio é que o espaço das suas obras passa a ser a cidade de Lisboa.
Membro do Partido Comunista Português (PCP), Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
A sua vida profissional foi muito díspar tendo exercido nos mais diferentes sectores: comércio, indústria, revistas, agências publicitárias, entre outras.
Era membro da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta atribuiu o Grande Prémio da Novelística a José Luandino Vieira pela sua obra Luuanda, o que levou ao encerramento desta instituição e à detenção de alguns dos seus membros na prisão de Caxias, entre os quais Manuel da Fonseca.
Em sua homenagem, a Escola Secundária de Santiago do Cacém denomina-se Escola Secundária Manuel da Fonseca e as bibliotecas municipais de Castro Verde e Santiago do Cacém chamam-se Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.
 
 
  
Estradas

Não era noite nem dia.
Eram campos campos campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era hora do poente.
Quase noite e quase dia.

E nos campos campos campos
abertos num sonho quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.

Já de noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.

— Ó nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te haverá de acudir?

Sob este corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.

— Vai te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.

Mas já noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
— como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Aí que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Aí como a boca de Nena
se entreabre fria fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!

Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca…
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos campos campos
abertos de espanto e sonho…

domingo, janeiro 31, 2021

O médico e escritor Fernando Namora morreu há 32 anos

 
Fernando Namora (Condeixa-a-Nova, 15 de abril de 1919 - Lisboa, 31 de janeiro de 1989) de nome completo Fernando Gonçalves Namora, médico e escritor português, autor de uma extensa obra, das mais divulgadas e traduzidas nos anos 70 e 80.
   

 

A Mais Bela Noite do Mundo 
  
  
Hoje,
será o fim!
 
Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!
  
Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
- Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!
  
- Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!
  
(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).
  
Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua...
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.
  
- Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.
  
Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.
  
(Era esta a voz do papão
que acendia a vela, tinha regaço de sombra
e velava
as noites da minha rua e a minha vida
e pintava-se de belo
na máscara de papelão).
  
Hoje,
será o fim!
  
Hoje,
nem a sombra do que há-de vir,
nem os mestres, nem os amigos, nem os livros,
nem a fragilidade dos meus pés
feitos de barro e cansaço!
Todas as minhas revoltas domadas,
todos os meus gestos em meio
e as minhas palavras sufocadas
terão a sua hora de viver e amar!
  
Hoje,
nem o cadáver a sorrir na morgue,
nem as mãos que ficaram angustiosas,
arrepiadas
no seu medo de findar!
  
Hoje,
será a mais bela noite do mundo!
 
 
in Mar de Sargaços (1940) - Fernando Namora

quinta-feira, outubro 15, 2020

Manuel da Fonseca nasceu há 109 anos

(imagem daqui)
  
Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém15 de outubro de 1911 - Lisboa, 11 de março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português
  
(...)
  
Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
A sua vida profissional foi muito díspar tendo exercido nos mais diferentes sectores: comércio, indústria, revistas, agências publicitárias, entre outras.
  

    
  
Vida 
  
 
Vida:
sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas
cadenciadas
rítmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo...
O vento da noite badala nos ramos
sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
— maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!

 

in Rosa dos Ventos (1940) - Manuel da Fonseca

segunda-feira, agosto 03, 2020

Políbio Gomes dos Santos morreu há 81 anos

(imagem daqui)
   
Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 7 de agosto de 1911 - Ansião, 3 de agosto de 1939, foi um poeta português.
Políbio, frequentou o Instituto Militar dos Pupilos do Exército em Lisboa e terminou os seus estudos liceais em Coimbra, tendo aí ingressado na Faculdade de Letras e Direito.
Devido a ter adoecido em Setembro 1938 com tuberculose, esteve internado no Sanatório da Guarda.
Foi um dos colaboradores dos Cadernos da Juventude, da Presença, do Sol Nascente e do O Diabo, assim como fez parte do grupo Novo Cancioneiro de tendência neo-realista.
Actualmente ainda existe o prémio literário Políbio Gomes dos Santos, em homenagem ao poeta.
     

Testamento Aberto

Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados,
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados.

Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
À força de querer transpor o além
Da minha porta fechada...

Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma CERTEZA alcanço
E uma mulher me beija.

Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?...
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha...
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?...

E que piedade anda a escrever um frágil,
Na embalagem dos ossos
Que trago emprestados...
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?...

Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
- A minha fragilidade
Foi-me dada
Para me servir.

 

in As Três Pessoas (1938) - Políbio Gomes dos Santos

sexta-feira, janeiro 31, 2020

Fernando Namora morreu há 31 anos

Fernando Namora (Condeixa-a-Nova, 15 de abril de 1919 - Lisboa, 31 de janeiro de 1989) de nome completo Fernando Gonçalves Namora, médico e escritor português, autor de uma extensa obra, das mais divulgadas e traduzidas nos anos 70 e 80.
   
 
  
Profecia 
  
Nem me disseram ainda
para o que vim.
Se logro ou verdade,
se filho amado ou rejeitado.
Mas sei
que quando cheguei
os meus olhos viram tudo
e tontos de gula ou espanto
renegaram tudo
— e no meu sangue veias se abriram
noutro sangue...
A ele obedeço,
sempre,
a esse incitamento mudo.
Também sei
que hei-de perecer, exangue,
de excesso de desejar;
mas sinto,
sempre,
que não posso recuar.
  
Hei-de ir contigo
bebendo fel, sorvendo pragas,
ultrajado e temido,
abandonado aos corvos,
com o pus dos bolores
e o fogo das lavas.
Hei-de assustar os rebanhos dos montes
ser bandoleiro de estradas.
— Negro fado, feia sina,
mas não sei trocar a minha sorte!
   
Não venham dizer-me
com frases adocicadas
(não venham que os não oiço)
que levo caminho errado,
que tenho os caminhos cerrados
à minha febre!
Hei-de gritar,
cair, sofrer
— eu sei.
Mas não quero ter outra lei,
outro fado, outro viver.
Não importa lá chegar...
O que eu quero é ir em frente
sem loas, ópios ou afagos
dos lábios que mentem.
  
É esta, não é outra, a minha crença.
Raios vos partam, vós que duvidais,
raios vos partam, cegos de nascença!
    
     
in Relevos (1927) - Fernando Namora

sábado, agosto 10, 2019

Carlos Oliveira nasceu há 98 anos

(imagem daqui)
  
Nascido no Brasil, filho de imigrantes portugueses, veio aos dois anos para Portugal. A família fixa-se em Cantanhede, mais precisamente na vila de Febres, onde o pai exercia Medicina. Em 1933 muda-se para Coimbra, onde permanece durante quinze anos, a fim de prosseguir os estudos. Em 1941 ingressa na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde estabelece amizade com Joaquim Namorado, João Cochofel e Fernando Namora. Em 1947 licencia-se em Ciências Histórico-Filosóficas, instalando-se definitivamente em Lisboa, no ano seguinte. Periodicamente volta a Coimbra e à sua Gândara. Em 1949 casa-se com Ângela, jovem madeirense que conhecera nos bancos da Faculdade, sua companheira e futura colaboradora permanente.
Data de 1942 o seu primeiro livro de poemas, intitulado "Turismo", com ilustrações de Fernando Namora e integrado na colecção poética de 10 volumes do "Novo Cancioneiro", iniciativa colectiva que, em Coimbra, assinalava o advento do movimento neo-realista. Porém, em 1937, já publicara em conjunto com Fernando Namora e Artur Varela, amigos de juventude, um pequeno livro de contos "Cabeças de Barro". Em 1943 publica o seu primeiro romance, "Casa na Duna", segundo volume da colecção dos Novos Prosadores (1943), editado pela Coimbra Editora. No ano de 1944 surge o romance "Alcateia", que viria a ser apreendido pelo regime. No entanto é desse mesmo ano a segunda edição de "Casa na Duna".
Em 1945 publica um novo livro de poesias, "Mãe Pobre". Os anos seguintes serão, para Carlos de Oliveira, bem profícuos quanto à integração e afirmação no grupo que veicula e auspera por um novo humanismo, com a participação nas revistas Seara Nova e Vértice, além da colaboração no livro de Fernando Lopes Graça "Marchas, Danças e Canções", uma antologia de vários poetas, musicadas pelo maestro.
Em 1953 publica "Uma Abelha na Chuva", o seu quarto romance e, unanimemente reconhecido, uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX, tendo sido integrado no programa da disciplina de português no ensino secundário.
Em 1957 organiza, com José Gomes Ferreira, os Contos Tradicionais Portugueses, alguns deles posteriormente adaptados ao cinema por João César Monteiro.
Em 1968 publica dois novos livros de poesia, "Sobre o Lado Esquerdo" e "Micropaisagem", e colabora com Fernando Lopes na adaptação de "Uma Abelha na Chuva". Em 1971 sai "O Aprendiz de Feiticeiro", colectânea de crónicas e artigos, e "Entre Duas Memórias", livro de poemas, que lhe vale o Prémio da Casa da Imprensa.
Em 1976 reúne toda a sua poesia em dois volumes, sob o título de "Trabalho Poético", juntando aos seus poemas anteriores, os inéditos reunidos em "Pastoral", publicado autonomamente no ano seguinte.
O seu último romance, "Finisterra", sai em 1978, tendo como fundo a paisagem gandaresa. A obra proporciona-lhe o Prémio Cidade de Lisboa, no ano seguinte.
Morre, na sua casa em Lisboa, com 60 anos incompletos.
 
 
Montanha

Sons sob a luz. Mosteiros,
torres sobrenaturais,
vibrando fluidamente no ar;
como? se o fluxo de mica,
os altos blocos de água,
cintilam sem rumor.

Toda esta arquitectura,
lenta percussão, perpassa;
sobre cerros sonoros;
com o seu contorno
infixo, fulgurando. Detenham-se
as estrelas quando
for noite; preguem-se
outros pregos de prata
fora do céu visível.
Sons já sem luz. Pastores
poisam as ocarinas, bebem;
entre colinas ocas;
o frio coalhado
pelas tetas das cabras.

 

in Pastoral (1977) - Carlos de Oliveira

quarta-feira, agosto 07, 2019

Políbio Gomes dos Santos nasceu há 108 anos

(imagem daqui)
  
Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 7 de agosto de 1911 - Ansião, 3 de agosto de 1939, foi um poeta português.
Políbio, frequentou o Instituto Militar dos Pupilos do Exército em Lisboa e terminou os seus estudos liceais em Coimbra, tendo aí ingressado na Faculdade de Letras e Direito.
Devido a ter adoecido, em setembro de 1938 com tuberculose, esteve internado no Sanatório da Guarda.
Foi um dos colaboradores dos Cadernos da Juventude, da Presença, do Sol Nascente e do O Diabo, assim como fez parte do grupo Novo Cancioneiro, de tendência neo-realista.
Actualmente, existe o prémio literário Políbio Gomes dos Santos, em homenagem ao poeta.
  
  
Testamento Aberto
  
Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados,
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados.

Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
À força de querer transpor o além
Da minha porta fechada...

Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma CERTEZA alcanço
E uma mulher me beija.

Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?...
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha...
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?...

E que piedade anda a escrever um frágil,
Na embalagem dos ossos
Que trago emprestados...
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?...

Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
- A minha fragilidade
Foi-me dada
Para me servir.

 

in As Três Pessoas (1938) - Políbio Gomes dos Santos

sábado, agosto 03, 2019

Porque hoje é dia recordar um Poeta...

(imagem daqui)

À Memória de Políbio Gomes dos Santos

O poeta que morreu entrou agora,
Não se sabe bem onde, mas entrou,
Todo coberto de demora,
No bocado de noite em que ficou.

As ervas lhe desenham
Seu espaço devido:
Depressa, venham
Lê-lo no chão os que o não tenham lido.

Que o sorriso que o veste
Já galga como um potro
As coisas tenebrosas,
E esquecido – só outro:
Este
Nem precisa de rosas.


in Eu, Comovido a Oeste (1940) - Vitorino Nemésio

Políbio Gomes dos Santos morreu há oitenta anos

(imagem daqui)
  
Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 7 de agosto de 1911 - Ansião, 3 de agosto de 1939, foi um poeta português.
Políbio frequentou o Instituto Militar dos Pupilos do Exército em Lisboa e terminou os seus estudos liceais em Coimbra, tendo aí ingressado na Faculdade de Letras e Direito.
Devido a ter adoecido, em setembro de 1938, com tuberculose, esteve internado no Sanatório da Guarda.
Foi um dos colaboradores dos Cadernos da Juventude, da Presença, do Sol Nascente e do O Diabo, assim como fez parte do grupo Novo Cancioneiro, de tendência neo-realista.
Actualmente, existe o prémio literário Políbio Gomes dos Santos, em homenagem ao poeta.
 
   
Poema da Voz Que Escuta
   
Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo, 
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro - a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.
  
Políbio Gomes dos Santos

segunda-feira, outubro 15, 2018

Manuel da Fonseca nasceu há 107 anos

(imagem daqui)
  
Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 15 de outubro de 1911 - Lisboa, 11 de março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português.
Após ter terminado o ensino básico, Manuel da Fonseca prosseguiu os seus estudos em Lisboa. Estudou no Colégio Vasco da Gama, Liceu Camões, Escola Lusitânia e Escola de Belas-Artes. Apesar de não ter sobressaído na área das Belas-Artes, deixou alguns registos do seu traço sobretudo nos retratos que fazia de alguns dos seus companheiros de tertúlias lisboetas como é o caso do de José Cardoso Pires. Durante os períodos de interregno escolar, aproveitava para regressar ao seu Alentejo de origem. Daí que o espaço de eleição dos seus primeiros textos seja o Alentejo. Só mais tarde e a partir de Um Anjo no Trapézio é que o espaço das suas obras passa a ser a cidade de Lisboa.
Membro do Partido Comunista Português (PCP), Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
A sua vida profissional foi muito díspar tendo exercido nos mais diferentes sectores: comércio, indústria, revistas e agências publicitárias, entre outras.
Era presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta atribuiu o Grande Prémio da Novelística a José Luandino Vieira pela sua obra Luuanda, o que levou ao encerramento desta instituição.
Em sua homenagem, a Escola Secundária de Santiago do Cacém, denomina-se Escola Secundária Manuel da Fonseca e a Biblioteca Municipal de Castro Verde, Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.
Vida 

Vida:
sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas
cadenciadas
rítmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo...
O vento da noite badala nos ramos
sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
— maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!

 

in Rosa dos Ventos (1940) - Manuel da Fonseca

domingo, março 11, 2018

Manuel da Fonseca morreu há 25 anos

(imagem daqui)
  
Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 12 de outubro de 1911 - Lisboa, 11 de março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português.
  
Biografia
Após ter terminado o ensino básico, Manuel da Fonseca prosseguiu os seus estudos em Lisboa. Estudou no Colégio Vasco da Gama, Liceu Camões, Escola Lusitânia e Escola de Belas-Artes. Apesar de não ter sobressaído na área das Belas-Artes, deixou alguns registos do seu traço, sobretudo nos retratos que fazia de alguns dos seus companheiros de tertúlias lisboetas como é o caso do de José Cardoso Pires. Durante os períodos de interregno escolar, aproveitava para regressar ao seu Alentejo de origem. Daí que o espaço de eleição dos seus primeiros textos seja o Alentejo. Só mais tarde e a partir de Um Anjo no Trapézio é que o espaço das suas obras passa a ser a cidade de Lisboa.
Membro do Partido Comunista Português (PCP), Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
A sua vida profissional foi muito díspar tendo exercido nos mais diferentes sectores: comércio, indústria, revistas, agências publicitárias, entre outras.
Era membro da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta atribuiu o Grande Prémio da Novelística a José Luandino Vieira pela sua obra Luuanda, o que levou ao encerramento desta instituição e à detenção de alguns dos seus membros na prisão de Caxias, entre os quais Manuel da Fonseca.
Em sua homenagem, a Escola Secundária de Santiago do Cacém denomina-se Escola Secundária Manuel da Fonseca e cada uma das bibliotecas municipais de Castro Verde e Santiago do Cacém se chama Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.
 
 
Ruas da Cidade
  
Na noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.
 
Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os altos prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.
 
E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...
 
Só eu ainda tenho passos para andar
e uma não sei que ternura
para todos que estão, para lá das paredes
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...
 
Em que casa e andar estará dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
quando nos cruzamos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam
ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro
— Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu
aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...
Agora este desânimo sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
à espera nem sabe de quê ...
 
De tantas horas iguais estou farto!
 
Mas ao fim e sempre a mesma esperança:
"um dia virá..."
E eu que tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quanto pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?
 
E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
— assim como um menino fazendo queixas a sua mãe.

quarta-feira, outubro 12, 2016

Manuel da Fonseca nasceu há 105 anos!

(imagem daqui)

Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 12 de outubro de 1911 - Lisboa, 11 de março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português.

Biografia
Após ter terminado o ensino básico, Manuel da Fonseca prosseguiu os seus estudos em Lisboa. Estudou no Colégio Vasco da Gama, Liceu Camões, Escola Lusitânia e Escola de Belas-Artes. Apesar de não ter sobressaído na área das Belas-Artes, deixou alguns registos do seu traço, sobretudo nos retratos que fazia de alguns dos seus companheiros de tertúlias lisboetas como é o caso do de José Cardoso Pires. Durante os períodos de interregno escolar, aproveitava para regressar ao seu Alentejo de origem. Daí que o espaço de eleição dos seus primeiros textos seja o Alentejo. Só mais tarde e a partir de Um Anjo no Trapézio é que o espaço das suas obras passa a ser a cidade de Lisboa.
Membro do Partido Comunista Português (PCP), Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
A sua vida profissional foi muito díspar tendo exercido nos mais diferentes sectores: comércio, indústria, revistas, agências publicitárias, entre outras.
Era membro da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta atribuiu o Grande Prémio da Novelística a José Luandino Vieira pela sua obra Luuanda, o que levou ao encerramento desta instituição e à detenção de alguns dos seus membros na prisão de Caxias, entre os quais Manuel da Fonseca.
Em sua homenagem, a Escola Secundária de Santiago do Cacém denomina-se Escola Secundária Manuel da Fonseca e cada uma das bibliotecas municipais de Castro Verde e Santiago do Cacém se chama Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.


Ruas da Cidade

Na noite calada e quieta como um grande segredo,
andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.

Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os altos prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.

E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...

Só eu ainda tenho passos para andar
e uma não sei que ternura
para todos que estão, para lá das paredes
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...

Em que casa e andar estará dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
quando nos cruzamos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam
ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro
— Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu
aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...
Agora este desânimo sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
à espera nem sabe de quê ...

De tantas horas iguais estou farto!

Mas ao fim e sempre a mesma esperança:
"um dia virá..."
E eu que tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quanto pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?

E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
— assim como um menino fazendo queixas a sua mãe.

segunda-feira, outubro 12, 2015

Manuel da Fonseca nasceu há 104 anos

(imagem daqui)

Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 12 de outubro de 1911 - Lisboa, 11 de março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português

(...)

Manuel da Fonseca fez parte do grupo do Novo Cancioneiro e é considerado por muitos como um dos melhores escritores do neo-realismo português. Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.
A sua vida profissional foi muito díspar tendo exercido nos mais diferentes sectores: comércio, indústria, revistas, agências publicitárias, entre outras.



Estradas

Não era noite nem dia.
Eram campos campos campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era hora do poente.
Quase noite e quase dia.

E nos campos campos campos
abertos num sonho quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.

Já de noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.

— Ó nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te haverá de acudir?

Sob este corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.

— Vai te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.

Mas já noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
— como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Aí que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Aí como a boca de Nena
se entreabre fria fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!

Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca…
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos campos campos
abertos de espanto e sonho…