terça-feira, fevereiro 18, 2014

O grande poeta popular algarvio, António Aleixo, nasceu há 115 anos

Estátua de António Aleixo, em Loulé

António Fernandes Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de fevereiro de 1899 - Loulé, 16 de novembro de 1949) foi um poeta popular português.

Biografia
Considerado um dos poetas populares algarvios de maior relevo, famoso pela sua ironia e pela crítica social, sempre presente nos seus versos, António Aleixo também é recordado por ter sido simples, humilde e semi-analfabeto, e ainda assim ter deixado como legado uma obra poética singular no panorama literário português da primeira metade do século XX.
No emaranhado de uma vida cheia de pobreza, mudanças de emprego, emigração, tragédias familiares e doenças na sua figura de homem humilde e simples, havia o perfil de uma personalidade rica, vincada e conhecedora das diversas realidades da cultura e sociedade do seu tempo. Do seu percurso de vida fazem parte profissões como tecelão, guarda de polícia e servente de pedreiro, trabalho este que, como emigrante, foi exercido em França.
De regresso ao seu país natal, estabeleceu-se novamente em Loulé, onde passou a vender cautelas e a cantar as suas produções pelas feiras portuguesas, actividades que se juntaram às suas muitas profissões e que lhe renderia a alcunha de "poeta-cauteleiro".
Faleceu por conta de uma tuberculose, a 16 de novembro de 1949, doença que tempos antes havia também vitimado uma de suas filhas.

Estilo
Poeta possuidor de uma rara espontaneidade, de um apurado sentido filosófico e notável pela «capacidade de expressão sintética de conceitos com conteúdo de pensamento moral», António Aleixo tinha por motivos de inspiração desde as brincadeiras dirigidas aos amigos até à crítica sofrida das injustiças da vida. É notável em sua poesia a expressão concisa e original de uma "amarga filosofia, aprendida na escola impiedosa da vida".
A sua conhecida obra poética é uma parte mínima de um vasto repertório literário. O poeta, que escrevia sempre usando a métrica mais comum na língua portuguesa (heptassílabos, em pequenas composições de quatro versos, conhecidas como "quadras" ou "trovas"), nunca teve a preocupação de registar suas composições. Foi o trabalho de Joaquim de Magalhães, que se dedicou a compilar os versos que eram ditados pelo poeta no intuito de compor o primeiro volume de suas poesias (Quando Começo a Cantar), com o posterior registo do próprio poeta tendo o incentivo daquele mesmo professor, a obra de António Aleixo adquiriu algum trabalho documentado. Antes de Magalhães, contudo, alguns amigos do poeta lançaram folhetos avulsos com quadras por ele compostas, mais no intuito, à época, de angariar algum dinheiro que ajudasse o poeta na sua situação de miséria que com a intenção maior de permanência da obra na forma escrita.
Estudiosos de António Aleixo ainda conjugam esforços no sentido de reunir o seu espólio, que ainda se encontra fragmentado por vários pontos do Algarve, algum dele já localizado. Sabe-se também que vários cadernos seus de poesia foram queimados, como meio de defesa contra o vírus infeccioso da doença que o vitimou, sem dúvida um «sacrifício» impensado, levado a cabo pelo desconhecimento de seus vizinhos. Foi esta uma perda irreparável de um património insubstituível no vasto mundo da literatura portuguesa.

Reconhecimento
A partir da descoberta de Joaquim de Magalhães, o grande responsável por "passar a limpo" e registar a obra do poeta, António Aleixo passou a ser apreciado por inúmeras figuras da sociedade e do meio cultural algarvio. Também é digno de registo José Rosa Madeira, que o protegeu, divulgou e coleccionou os seus escritos, contribuindo no lançamento do primeiro livro, "Quando Começo a Cantar" (1943), editado pelo Círculo Cultural do Algarve.
A opinião pública aceitou a primeira obra de António Aleixo com bom agrado, tendo sido bem acolhida pela crítica. Com uma tiragem de cerca de 1.100 exemplares, o livro esgotou-se em poucos dias, o que proporcionou ao Poeta Aleixo uma pequena melhoria de vida, contudo ensombrada pela morte de uma filha sua, com tuberculose. Desta mesma doença viria o poeta a sofrer pelos tratamentos que a vida lhe foi impondo, tendo de ser internado no Hospital – Sanatório dos Covões, em Coimbra, a 28 de junho de 1943.
Em Coimbra começa uma nova era para o poeta que descobre novas amizades e deleita-se com novos admiradores, que reconhecem o seu talento, de destacar o Dr. Armando Gonçalves, o escritor Miguel Torga, e António Santos (Tóssan), artista plástico e autor da mais conhecida imagem do poeta algarvio, amigo do poeta que nunca o desamparou nas horas difíceis. Os seus últimos anos de vida foram passados ora no sanatório em Coimbra, ora no Algarve, em Loulé.
A 27 de maio de 1944 recebeu o grau de Oficial da Ordem do Mérito.

Homenagem e Consagração
Em homenagem ao poeta popular e à sua obra, muitos distritos portugueses atribuíram o seu nome a ruas e avenidas e até a diversas escolas, como:
  • O Liceu de Portimão passou a chamar-se Escola Secundária Poeta António Aleixo.
  • Em Coimbra - Na zona de Santa Clara e em Brasfemes.
  • Em Paço de Arcos, junto da Escola Náutica, também existe uma rua com o nome de António Aleixo.
  • Em Odivelas foi dado o nome do poeta a um largo.
  • Em Setúbal, o nome do poeta foi também atribuído a uma rua de um bairro da cidade, situado na zona do Centro Hospitalar.
  • Em Camarate, no Bairro São José
  • Em Albufeira, junto às praias no Algarve, e em muitas ruas espalhadas por esse Portugal fora e não só, pode-se ver e ouvir o nome do Poeta do Povo imortalizado em alguma placa.
  • Há alguns anos também passou a existir a «Fundação António Aleixo», com sede em Loulé e que já usufrui do Estatuto de Utilidade Pública, o que lhe permite atribuir bolsas de estudo aos mais carenciados, facto que deve ser encarado como bastante positivo.
  • O reconhecimento a este poeta tem-se repercutido noutros países de língua portuguesa, nos quais o nome de Aleixo foi imortalizado em instituições como, por exemplo, a Escola Poeta António Aleixo no Liceu Católico de São Paulo no Brasil.

Obra
António Fernandes Aleixo está hoje, bem enraizado e presente. As suas obras foram apresentadas na televisão, rádio e demais sistemas de informação, os seus versos incluídos em diversas antologias, o seu nome figura na história da literatura de língua portuguesa, é patrono de instituições e grupos político-culturais, existem medalhas cunhadas e monumentos erigidos em sua honra. Da sua autoria estão publicadas as seguintes obras:
  • Quando começou a cantar (1943);
  • Intencionais (1945);
  • Auto da vida e da morte (1948);
  • Auto do curandeiro (1949);
  • Auto do Ti Jaquim (1969) - incompleto;
  • Este livro que vos deixo (1969) - reunião de toda a obra do poeta;
  • Inéditos (1979) - tendo sido, estes quatro últimos, publicados postumamente.


Quando não tenhas à mão
Outro livro mais distinto,
Lê estes versos que são
Filhos das mágoas que sinto

Forçam-me, mesmo velhote,
De vez em quando, a beijar
A mão que brande o chicote
Que tanto me faz penar.

Porque o mundo me empurrou,
Caí na lama, e então
Tomei-lhe a cor, mas não sou
A lama que muitos são.

Eu não tenho vistas largas,
Nem grande sabedoria,
Mas dão-me as horas amargas
Lições de filosofia.

Deixam-me sempre confuso
As tuas palavras boas,
Por não te ver fazer uso
Dessa moral que apregoas.

São parvos, não rias deles,
Deixa-os ser, que não são sós;
Às vezes rimos daqueles
Que valem mais do que nós.

À guerra não ligues meia,
Porque alguns grandes da terra,
Vendo a guerra em terra alheia,
Não querem que acabe a guerra

Vós que lá do vosso império
Prometeis um mundo novo,
Calai-vos, que pode o povo
Qu'rer um mundo novo a sério.


Que importa perder a vida
Em luta contra a traição,
Se a Razão mesmo vencida,
Não deixa de ser Razão?

P'ra mentira ser segura
E atingir profundidade,
Tem que trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.

Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que, não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço.

Enquanto o homem pensar
Que vale mais que outro homem,
São como os cães a ladrar,
Não deixam comer, nem comem.

Eu já não sei o que faça
P'ra juntar algum dinheiro;
Se se vendesse a desgraça
Já hoje eu era banqueiro.

A vida na grande terra
Corrompe a humanidade.
Entre a cidade e a serra
Prefiro a serra à cidade.

O mundo só pode ser
Melhor do que até aqui,
- Quando consigas fazer
Mais p'los outros que por ti!

Eu já não sei o que faça
P'ra juntar algum dinheiro;
Se se vendesse a desgraça
Já hoje eu era banqueiro.

A vida na grande terra
Corrompe a humanidade.
Entre a cidade e a serra
Prefiro a serra à cidade.

O mundo só pode ser
Melhor do que até aqui,
- Quando consigas fazer
Mais p'los outros que por ti!

Para não fazeres ofensas
E teres dias felizes,
Não digas tudo o que pensas,
Mas pensa tudo o que dizes.

Num arranco de loucura,
Filha desta confusão,
Vai todo o mundo à procura
Daquilo que tem à mão.

Vinho que vai para vinagre
Não retrocede o caminho;
Só por obra de milagre,
Pode de novo ser vinho.

Entre leigos ou letrados,
Fala só de vez em quando,
Que nós, às vezes, calados,
Dizemos mais que falando.

Quando te vês mal, e dizes
Que preferias a morte,
Pensa que outros menos felizes
Invejam a tua sorte.

Mentiu com habilidade,
Fez quantas mentiras quis;
Agora fala verdade
Ninguém crê no que ele diz.

Vemos gente bem vestida,
No aspecto desassombrada;
São tudo ilusões da vida,
Tudo é miséria dourada.

Tem a música o poder
De tornar o homem feliz;
Nem há quem saiba dizer
Tanto quanto ela nos diz.

Quando os homens se convençam
Que a força nada faz,
Serão felizes os que pensam
Num mundo de amor e paz.

Gosto do preto no branco,
Como costumam dizer:
Antes perder por ser franco
Que ganhar por não ser.

Não sou esperto nem bruto,
Nem bem nem mal educado:
Sou simplesmente o produto
Do meio em que fui criado.

Queremos ver sempre à distância
O que não está descoberto,
Sem ligarmos importância
Ao que está à vista e perto.

Porque será que nós temos
Na frente, aos montes, aos molhos,
Tantas coisas que não vemos
Nem mesmo perto dos olhos?

Há pessoas muito altas
De nome ilustrado e sério,
Porque o oiro tapa as faltas
Da moral e do critério.

Quantas sedas aí vão,
Quantos colarinhos,
São pedacinhos de pão
Roubados aos pobrezinhos!

Julgam-me mui sabedor;
E é tão grande o meu saber
Que desconheço o valor
Das quadras que sei fazer.

Peço às altas competências
Perdão, porque mal sei ler,
P’ra aquelas deficiências
Que os meus versos possam ter.

Quem nada tem, nada come;
E ao pé de quem tem de comer,
Se alguém disser que tem fome,
Comete um crime, sem querer.

A quadra tem pouco espaço
Mas eu fico satisfeito
Quando numa quadra faço
Alguma coisa com jeito.

Nada direi, mas, enfim,
Vou ter a grande alegria
De a Arte dizer por mim
Tudo quanto eu vos diria.

Nos versos que se improvisem,
Os poetas sabem ler,
Para além do que eles dizem,
Tudo o que querem dizer.

Falemos sinceramente,
Como p'ra nós mesmos, a sós;
Lá longe de toda a gente,
Do mundo, e até de nós.

Após um dia tristonho
de mágoas e agonias
vem outro alegre e risonho:
são assim todos os dias.

Mentiu com habilidade,
Fez quantas mentiras quis;
Agora fala verdade,
Ninguém crê no que ele diz.

São parvos, não rias deles,
Deixa-os ser, que não são sós;
Às vezes rimos daqueles
Que valem mais do que nós.

Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande,
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande.

Quando os Homens se convençam
Que à força nada se faz,
Serão f'lizes os que pensam
Num mundo de amor e paz.

A arte em nós se revela
Sempre de forma diferente:
Cai no papel ou na tela
Conforme o artista sente.

Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado;
O ribeirinho não morre,
Vai correr por outro lado.

Embora os meus olhos sejam
Os mais pequenos do mundo,
O que importa é que eles vejam
O que os Homens são no fundo.

Julgando um dever cumprir,
Sem descer no meu critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a sério.!

Ser criada de um ricaço,
Desses que temos a rodos,
É dar o primeiro passo
P'ra ser criada de todos.

Este livro que vos deixo
E que a minha alma ditou,
Vos dirá como o Aleixo
Viveu, sentiu e pensou.

 

in Este livro que vos deixo (1969) - António Aleixo

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