quarta-feira, dezembro 16, 2020

Poema, cantado, alusivo à data...

 

Afonso de Albuquerque

Quando esta escrevo a Vossa Alteza
Estou com um soluço que é sinal de morte.
Morro à vista de Goa, a fortaleza
Que deixo à Índia a defender-lhe a sorte.

Morro de mal com todos que servi,
Porque eu servi o rei e o povo todo.
Morro quase sem mancha, que não vi
Alma sem mancha à tona deste lodo.

De Oeste a Leste a índia fica vossa;
De Oeste a Leste o vento da traição
Sopra com força para que não possa
O Rei de Portugal tê-la na mão.

Em Deus e em mim o império tem raízes
Que nem um furacão pode arrancar...
Em Deus e em mim, que temos cicatrizes
Da mesma lança que nos fez lutar.

Em mais alguém, Senhor, em mais ninguém
O meu sonho cresceu e avassalou
A semente daninha que de além
A tua mão, Senhor, lhe semeou.

Por isso a Índia há de acabar em fumo
Nesses doirados paços de Lisboa;
Por isso a pátria há de perder o rumo
Das muralhas de Goa.

Por isso o Nilo há de correr no Egito
E Meca há de guardar o muçulmano
Corpo dum moiro que gerou meu grito
De cristão lusitano.

Por isso melhor é que chegue a hora
E outra vida comece neste fim...
Do que fiz não cuido agora:
A Índia inteira falará por mim.
  
  

in Poemas Ibéricos (1965) - Miguel Torga

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