segunda-feira, janeiro 17, 2011

Poema de Torga muito actual

A pedido de diversos amigos, o poema de Torga que está na música publicada num post anterior:

(imagem daqui)

Tormenta

Noite medonha, aquela!
O mar, tanto engolia a caravela,
Como a exibia à tona, desmaiada!
No abismo do céu, nem uma estrela!
E a Cruz de Cristo, a agonizar na vela,
Suava sangue sem poder mais nada!

A fúria cega dum tufão raivoso
Vinha das trevas desse Tenebroso
E varria a quimera do convés...
O mastro grande que Leiria deu
Era um homem de pinho, mas caiu
Quando um raio o abriu de lés a lés...

Novo guarda dos rumos da Nação,
O piloto guiava à perdição
Como um pai os destinos do seu lar...
Até que o lar inteiro se desfez.
Até que ao pai chegou também a vez
De fazer uma prece e descansar...

O gajeiro sem gávea, dessa altura
Que a alma atinge ao rés da sepultura,
Olhou ainda a bruma em desafio...
Mas a Sereia Negra que cantava
No coração do mar, tanto chamava,
Que ele deu-lhe aquele olhar cansado e frio.

O naufrágio alargou-se ao mundo inteiro.
E o corpo morto de um herói, primeiro
Cruzado da unidade deste mundo,
No dorso frio duma onda irada,
Mandou aos mortos, com a mão na espada,
Boiar o sonho, que não fosse ao fundo.

in Poema Ibéricos - Miguel Torga

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