"Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo"
(Natália Correia)
1. Não há nada pior para uma comunidade que a percepção de que o sacrifício a que é sujeita não irá ter uma contrapartida.
Olhando para o novo plano de austeridade, é com essa sensação que ficamos. Nada nos garante que daqui a pouco tempo não nos será dito que é preciso mais do nosso dinheiro para aguentar a máquina do Estado, que o assalto fiscal não continuará, que não teremos de aceitar menos apoios sociais, que uma parte importante dos nossos concidadãos não irá cair na pobreza.
De facto, nada de estrutural muda. Não vemos um plano, vemos apenas medidas avulsas sem um propósito preciso e bem definido.
Há algum projecto de reforma do aparelho do Estado? Há, finalmente, uma definição concreta do papel do Estado na comunidade? Em algum lado vemos que vai haver um esforço para acabar com os milhares de fundações, institutos, empresas públicas que nada produzem e que não deixam produzir?
Há algum plano que nos dê, pelo menos, a ilusão de que vai haver crescimento económico? Podemos discernir um projecto que nos garanta que a iniciativa privada vai ser apoiada ou pelo menos não boicotada?
O que vamos ter é um plano que corta de forma igual os salários aos funcionários públicos que são bons trabalhadores e aos que se arrastam pelas repartições públicas. Um aumento de impostos que vai gerar ainda mais desigualdades. Um pequeno decréscimo nas transferências para empresas que nem sequer deviam estar na alçada do Estado. Retiram-se apoios a pessoas que vivem nos limiares da sobrevivência.
Nada muda. Continuamos descrentes esperando que nos anunciem outro e outro plano de austeridade.
2. Não fossem as particularidades do nosso sistema político, e o Governo teria caído na última quinta- -feira.
Não, não por causa do anúncio do enésimo malfadado pacote; não por as medidas anunciadas serem correctas ou incorrectas, evitáveis ou inevitáveis; não pela sensação de que, se tivessem sido implementadas mais cedo, poderiam ser menos duras; não por desconfiarmos de que há uma manigância (lembram-se?) na questão do fundo de pensões da PT; não por nos ter sido dito e redito que era impossível cortar na despesa e afinal...;
Não duvido que seria legítimo pensar que estas razões seriam suficientes para que o Governo não pudesse estar em funções nem mais um dia, mas não me parece que sejam definitivas. A grande questão é que o Governo desistiu de dar explicações aos portugueses. O Governo convenceu-se de que o seu mandato lhe confere o poder de não prestar contas. Esta atitude rompe, de maneira definitiva, o contrato entre os eleitores e quem os governa. O Governo esquece que os eleitores não passam um cheque em branco, que a democracia não é a ditadura da maioria, que a democracia não se esgota nas eleições.
Os eleitores devem sempre ser a todo o tempo esclarecidos sobre a condução dos assuntos que a todos dizem respeito, se o Governo não está disposto a isso deve imediatamente ser substituído.
Quinta-feira, os representantes dos cidadãos perguntaram várias vezes ao primeiro-ministro o que todos os portugueses querem saber: o que mudou em quatro meses? O que se passou para praticamente dum momento para o outro o PEC II ser insuficiente para atingir as metas propostas? Porque é que dia 6 de Julho tudo estava a correr como o planeado, e pouco mais de dois meses volvidos nos dizem que é preciso outro pacote?
O primeiro-ministro, recusando-se a dar qualquer tipo de satisfação, insultou a democracia e os portugueses. Não, repito, pelas novas medidas de austeridade (agora provavelmente inevitáveis), mas por lhes negar as respostas a que todos temos democraticamente direito.
Não pode ser esquecida a responsabilidade do PSD neste processo. E não é a falsa responsabilidade que lhe querem imputar, ou seja, a de ter de deixar passar o novo orçamento a qualquer preço. Quer os sociais-democratas se abstenham quer votem contra o Orçamento, há só um e apenas um responsável pelas medidas que, provavelmente, aí vêm: o Governo.
O PSD não pode, não deve, aceitar qualquer negociação enquanto não lhe for dada uma explicação sobre os resultados do PEC II. O PSD não pode partir para o diálogo fazendo tábua rasa do passado recente.
Os sociais-democratas devem isso aos portugueses.
NOTA: o poema citado tem uma versão musical, lindíssima, a Queixa das almas jovens censuradas, cantada por José Mário Branco, que queremos partilhar com os nossos leitores:
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