Escândalos da democracia: O livro que vendeu 30 mil e desapareceu
Não foi só o livro. O autor emigrou após as revelações que atingiram Mário Soares
Fixe
bem esta data: 27 de janeiro de 1996. Era um sábado e o público
português assistiu a um fenómeno sem precedentes: um livro, escrito por
um autor nacional, vendeu 30.000 exemplares no lançamento.
Depois foi
retirado do mercado e nunca mais reapareceu.
"Contos proibidos. Memórias de um PS desconhecido"
foi a obra "mais atrevida", segundo Nelson de Matos, a pessoa que o
publicou na Dom Quixote. Numa entrevista ao "Expresso", em 2004, o
editor negou ter sofrido pressões ou ameaças, mas denunciou a
existência de "comentários negativos" que lhe causaram
"bastantes dificuldades pessoais".
"A todos expliquei que o livro existia", disse na altura. "Tinha
revelações importantes e procurava ser sério ao ponto de as provar.
Desse ponto de vista, achei que merecia ser discutido na sociedade."
Nelson de Matos é também, provavelmente, uma das poucas pessoas que
conhece o
paradeiro do autor - a hipótese mais repetida é a
Suécia, mas ninguém está em condições de confirmar nada. O escritor,
tal como acontecera antes com o
bestseller instantâneo,
desapareceu sem deixar rasto. Dez anos mais tarde, o jornalista Joaquim
Vieira publicou cinco textos sobre o assunto na "Grande Reportagem".
Em conversa com o i, recorda que "quando o livro saiu, o Rui Mateus foi
entrevistado pelo
Miguel Sousa Tavares na SIC, e a primeira pergunta que este lhe fez foi:
'Então, como é que se sente na pele de um traidor?'
Toda a entrevista decorreu sob essa ideia."Mas o que continha o livro
afinal? Qual o motivo para as desaparições? Retomando a síntese de
Vieira, que o analisou a fundo, Rui Mateus diz que Mário Soares, "após
ganhar as primeiras presidenciais, em 1986, fundou com alguns amigos
políticos um grupo empresarial destinado a usar fundos financeiros
remanescentes da campanha. (...) Que, não podendo presidir ao grupo por
questões óbvias, Soares colocou os amigos como testas-de-ferro". O
investigador Bernardo Pires de Lima também leu o livro e conserva um
exemplar. "Parece-me evidente que desapareceu de circulação rapidamente
por ser um documento incómodo para muita gente, sobretudo altas
figuras do PS, metidas numa teia de tráfico de influências complicada
que o livro não se recusa a revelar com documentos", observa. A obra
consta de dez capítulos e 47 anexos. Ao todo, 455 páginas que arrancam
na infância do autor, percorrem o primeiro quarto de século do PS
(desde as origens na clandestinidade da Acção Socialista) e acabam em
1995, perto do final do segundo mandato de Soares. Na introdução,
Mateus escreve: "É um livro de memórias em redor do Partido Socialista,
duma perspectiva das suas relações internacionais, que eu dirigira
durante mais de uma década." Os últimos três capítulos abordam o
caso Emaudio
- um escândalo rebentado pelo próprio Mateus e que motivou a escrita
de "Contos proibidos" para "repor a verdade". Para Joaquim Vieira e
Bernardo Pires de Lima, a credibilidade do livro é de oito sobre dez.
"O livro adianta imensos detalhes que reforçam a sua credibilidade e
nenhum deles foi alguma vez desmentido", argumenta o jornalista e
actual presidente do Observatório da Imprensa. Vieira lamenta o
"impacto político nulo e nenhuns efeitos" das revelações de Mateus.
"Em
vez de investigar práticas porventura ilícitas de um chefe de Estado,
os jornalistas preferiram crucificar o autor pela 'traição' a Soares."
Apesar de, na estreia, terem tido todas as coberturas, livro e autor
caíram rapidamente no esquecimento. Hoje, a obra pulula na Internet, em
versão PDF.