A retórica antinazi datou irremediavelmente muitos dos filmes americanos produzidos no tempo da guerra (1939-45). Até Chaplin, o mestre do mudo, caiu nesta armadilha na célebre cena final do seu O Grande Ditador (1940) – e foi quanto bastou para se perder uma obra-prima. Inversamente, o que faz a força perene de Casablanca (Michael Curtiz, 1942) é o facto de jamais ser um filme de propaganda óbvia ao esforço aliado no combate sem tréguas contra o III Reich. E no entanto não conheço outra película tão eficaz no apelo subliminar ao envolvimento de Washington no conflito.
Numa cena poucas vezes mencionada, Richard Blaine (Humphrey Bogart) pergunta ao pianista Sam (Dooley Wilson) que horas seriam em Nova Iorque. Pergunta aparentemente sem nexo, mas logo justificada pelo comentário adicional de Blaine: “Está toda a gente a dormir na América.”
“Agora só luto por mim. Sou a única causa que me interessa”, diz Bogart a Victor Laszlo (Paul Henreid), tentando aparentar cinismo por uma última vez. Nesta fase já ninguém acredita em tal fachada: há uma dimensão moral em Rick que de todo não existe no dúplice capitão Louis Renault (Claude Rains), sempre virado – nas suas próprias palavras – para “o lado de que sopra o vento”.
O “vento” daqueles tempos era o do cobarde colaboracionismo de Pétain – o velho marechal que se rendeu a Hitler e que surge em cartaz, no início do filme, contra o qual é assassinado um suposto membro da resistência francesa.
Bogart, o aventureiro de passado sombrio, e Bergman, a mulher dividida entre dois homens, não são figuras sem mácula, ao jeito dos “heróis exemplares” que o realismo socialista fornecia às massas. São gente de carne e osso, com os mesmos defeitos de qualquer de nós – e daí o facto de, tantos anos volvidos, continuarmos a identificar-nos com o destino deles. Rick, que jurava “não arriscar o pescoço por ninguém”, proclama afinal que o futuro do planeta importa bem mais do que “três pessoas insignificantes”. Ilsa, incapaz de voltar duas vezes costas à mesma paixão, segreda-lhe: “Terás de ser tu a pensar por nós.”
Rick assim faz. Entre o amor sem sombra de liberdade e a liberdade sem garantia de amor, optou por esta. Como se conhecesse os belíssimos versos de Sophia:
Terror de te amar num sítio tão frágil como o Mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e separa.
Esta é talvez a maior lição que aprendemos em Casablanca: o verdadeiro amor é sinónimo absoluto de verdadeira liberdade.
Texto para o 75.º aniversário da estreia do filme, que hoje se assinala
in Delito de Opinião - post de Pedro Correia
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