terça-feira, março 15, 2011

Um poema para um melhor país - III

(imagem daqui)

PEDRA DE CANTO



[50]

Ainda terás alento e pedra de canto,

Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,

Para cantar com sílabas ásperas o canto,

De rima em –anto, o pranto,

O amor, o apego, o sossego, a rima interna

Das almas calmas, isto e aquilo, o canto

Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,

O estupro de outrora, e a triste vida dela, o canto,

Buraco onde te metes, duplamente: com falo

Falas, fá-la chorar e ganir, com falo e canto

No buraco de grilo onde anoiteces,

No buraco de falso eremita onde conheces

Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto

De falo, falas, fala, rima, rimas, canto

De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares

Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,

Canteiro porque o falo a julga flores, o canto

Áspero do canteiro de pedra e sêmen que tu és

(No buraco do falo falaste),

Tu, falazão de amor, que a amas e conheces…

Amas a quem? conheces quem? Pobre Hipocrene,

Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,

Embora merda em sangue dessa pobre alma em ferida,

A dela e a tua, cadela a tua pura e fiel no canto

De lama e amor como não há no charco em torno,

Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno

E logo a sílaba e o inferno te obedecem

E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,

Sua íntima vergonha inconfessada desponta,

Passiflora penada, pequenina vulva triste

Em teu sémen sarada e já livre de afronta:

O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,

Límpido como o vidro a altas horas lavado,

Como o galo de bronze pela dor acordado,

No amor e na morte alevantado,

Da trampa mentirosa resgatado,

Como Dante o lavrou em pedra de Florença

E Deus to deu de amor por ela no atoleiro,

Flor menina de orvalho e em amor verdadeiro?



Ainda terás alento e pedra de canto,

Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,

Ou enfim amor a fogo dado e perdão puro…

Eu quero lá saber! amor de Deus no canto

De misericórdia e paz, mesmo para os violentos

Da violada violeta, a breve margarida

Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?

Cala-te e humilha-te com ela,

Que é maior do que tu no canto,

E a esta hora só bebe talvez água salgada,

Oh poeta de água doce!



Mas antes de calar espada e voz, responde:



Ainda terás alento e pedra de canto

Para cantar estas coisas,

Encantar outra vez a donzela roubada e nina morta?

Enfim o teu amor?

Dize lá, sem vergonha,

Homem singelo!

Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.



(Quem fala?)


in Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga - Vitorino Nemésio

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