A vitória e o fracasso são dois impossíveis, e é necessário
recebê-los com idêntica serenidade e com uma saudável dose de desdém.
Rudyard Kipling
O «onze» leonino que fez história:
(em cima) Venâncio, Oceano, Manuel Marques (Massagista), Virgílio,
Meade, Damas; em baixo: Gabriel, Zinho, Fernando Mendes, Manuel
Fernandes, Litos e Mário Jorge
Na história do «dérbi dos dérbis» há um antes e um depois da tarde de 14
de dezembro de 1986. Nesse dia chuvoso, o Benfica caiu com tal estrondo
em Alvalade, que os ecos de tal derrota ainda ressoam passado algumas
décadas. Nunca o Benfica tinha perdido por tanto, e somente por uma vez,
numa noite de má memória em Vigo, voltaria a sofrer tal número
inusitado de golos.
A derrota de Alvalade, o célebre «sete-a-um», será a mais dolorosa de
todas as derrotas do Benfica, e a mais saborosa e lembrada vitória
leonina, até mais que a famosa vitória do «cantinho do Morais» que valeu
a conquista da Taça das Taças para os homens de Alvalade. Estranho
mundo este do «dérbi» que faz com que uma vitória que se revelou de
Pirro, seja mais lembrada que uma vitória que valeu um troféu europeu.
Uma vitória que valeu pouco
Segundo a tradição, Pirro, o General e Rei de Épiro, território que hoje
se encontra na Albânia, foi um líder militar que comandou uma invasão
da Itália em 281 a.C., durante um conflito que opós o Reino de Épiro à
República Romana.
Durante a sua campanha no sul de Itália, foi derrotando uma a uma, as
legiões romanas que eram enviadas para enfrenta-lo. Batalha atrás de
batalha, venceu os romanos, mas sem nunca conseguir a vitória decisiva
que garantia a vitória na guerra.
Algumas das vitórias tiveram grandes custos, com o seu exército a perder
muitos homens, chegando ao ponto, de após a batalha de Ásculo, ao ser
felicitado pelos seus generais pela brilhante vitória conseguida, ter
respondido: «Mais uma vitória como esta, e estou perdido!»
Daí associar-se o nome de Pirro a uma vitória conseguida a alto preço e
com elevados custos, ou também considerar que é uma vitória que não
serve de nada e que não garante nenhuma conquista. Uma vitória que não
vale mais do que isso mesmo, e que não chega para ganhar uma guerra.
Os benfiquistas gostam de lembrar aos sportinguistas que o «sete-a-um»
aconteceu num ano em que o Benfica se sagrou campeão. Que a vitória foi
em vão, e que só ajudou o Benfica a unir-se e a conquistar o título. Os
leões por seu lado não ligam muito aos argumentos benfiquistas e deixam
que a força dos números fale mais alto. Com Pirro, ou sem Pirro, para
eles, o «sete-a-um» foi bem mais que uma vitória.
A verdade é que os dois têm razão. O Sporting teve uma vitória de Pirro e
viu o Benfica sagrar-se campeão no final da época; mas por outro lado, o
Benfica sofreu às mãos do eterno rival uma derrota até então sem par,
batendo o recorde do 7x2 a favor do Benfica, que já datava de 28 de
abril de 1946.
Uma «serenata à chuva»
Os jogos entre o Sporting e Benfica, especialmente quando se jogam em
Alvalade, têm uma tendência natural para o inesperado. Do banho de
multidão que Marcello Caetano recebeu nos 3x5 em 1974, pouco tempo antes
da queda do regime, aos 5x3 em que o Sporting de Paulo Bento virou o
jogo ao contrário, voltando à sempre lembrada noite de magia de João
Vieira Pinto, a verdade é que o dérbi tem uma magia ímpar, que em
Portugal não tem par.
Chuvas de golos, muitos deles à chuva, durante anos os leões e águias
foram escrevendo algumas das mais brilhantes da história do futebol
nacional. Mimetizando o clássico de Gene Kelly, os velhos rivais
marcaram, golo atrás de golo, em verdadeiras «serenatas à chuva», mas
nenhuma terá sido tão histórica, como a daquele dia .
Para os leões, Manuel Fernandes não será Gene Kelly, mas muitos deles
terão por certo dançado e cantado à chuva, nesse frio fim de tarde de 14
de dezembro de 1986.
Saltillo, CEE, FC Porto: Portugal em 1986/87
Olhando para trás, o país parecia ser outro. Mário Soares era o
Presidente, Cavaco Silva era o Primeiro Ministro, e voltaria a ser
eleito em Outubro do ano seguinte com a primeira maioria absoluta da
democracia portuguesa. O país aderira há pouco tempo à então Comunidade
Económica Europeia, começando a receber a primeira grande vaga de fundos
de Bruxelas, que deixava no ar a impressão que o período de crise e da
intervenção do FMI já fazia parte de um passado distante e
irrepetível...
A derrota de Alvalade, o célebre «sete-a-um», será a mais dolorosa de
todas as derrotas do Benfica, e a mais saborosa e lembrada vitória
leonina, até mais que a famosa vitória do «cantinho do Morais» que valeu
a conquista da Taça das Taças para os homens de Alvalade. Estranho
mundo este do «dérbi» que faz com que uma vitória que se revelou de
Pirro, seja mais lembrada que uma vitória que valeu um troféu europeu.
No desporto, a seleção continuava a viver na ressaca de Saltillo, com
todos os "revoltosos" afastados, arrastando-se na fase de qualificação
para o Euro 88. O FC Porto, campeão em título, estava a meses de se
sagrar campeão europeu em Viena, mas por certo ainda não sonhava com o
calcanhar de Madjer...
Mário Jorge, o herói improvável, que apontou dois dos sete golos do Sporting
Chuva e um golo
Na véspera do dérbi, nas Antas, em noite de algum nevoeiro, o FC Porto
esmagara o Sporting Farense por 8x3, podendo depois assistir descansado
ao clássico, seguro que estava na liderança.
Nessa manhã, ao lerem os jornais, os portugueses estavam fascinados com
os cinco remates certeiros de Fernando Gomes num jogo com onze golos, e
poucos podiam sonhar que o Sporting x Benfica dessa tarde, pudesse
tornar o FC Porto x Farense da véspera, numa quase nota de rodapé num
futuro texto sobre o clássico...
Alheios a tudo isso, os protagonistas do jogo preparavam-se para o
embate, sendo a grande novidade a estreia de um equipamento azul por
parte do benfiquista Silvino. Chovia copiosamente e nas bancadas «não
cabia mais um ovo».
Mais de setenta mil almas lotavam o antigo anfiteatro leonino. Vitor
Correia apitou para o começo do jogo e a primeira parte foi bastante
equilibrada, com oportunidades repartidas e pouca emoção. Ao intervalo
ganhava o Sporting por 1x0, fruto do golo madrugador de Mário Jorge.
No dia seguinte, o jornal «A Bola»
fazia capa do feito leonino e lembrava o resultado histórico - nunca
antes, nem nunca depois, voltou a haver uma diferença tão grande num
jogo entre os velhos rivais
A glória do Manel
Quando aos cinquenta minutos Manuel Fernandes, com a cabeça, deu o
melhor seguimento ao canto apontado por Zinho na esquerda, poucos na
bancada podiam imaginar que nos próximos 36 minutos iriam assistir a
mais seis golos.
Nem o mais confiante e otimista sportinguista, imaginaria o que iria
acontecer, quando aos 59 minutos, Vando reduziu o resultado para 2x1. E
na bancada os benfiquistas voltavam a acreditar que o empate era
possível...
Mas foi então que o jogou entrou em modo «Sporting x Benfica», e já não
houve mais forma de controlar-lhe o destino... Ralph Meade fez o 3x1 aos
65´ e matou a esperança encarnada. Passaram três minutos e Mário Jorge
bisou, abrindo as portas da goleada.
Manuel Fernandes não quis ficar atrás e marcou um três minutos depois,
outro aos 82´ e fechou a contagem aos 86´. «Sete-a-um», com um
poker do
capitão de Sarilhos Pequenos, que correu para guardar a bola que Gabriel
queria para si.
«Gabi, essa para mim!» gritou o Manel, e o defesa acedeu, não por o
pedido vir do capitão, mas porque não é todos os dias que se marcam
quatro golos ao Benfica...
Nas bancadas havia quem rasgasse o cartão de sócio do
Sport Lisboa e
Benfica. Um pouco por toda a superior ardiam os restos de bandeiras
encarnadas, que os próprios adeptos benfiquistas tinham queimado,
«cegos» com a vergonha e a frustração da goleada sofrida... Os leões
cantavam, em júbilo festejavam uma vitória sem par.
Manuel Fernandes levou para casa a bola que ofereceu como presente à
filha, Silvino nunca mais voltou a vestir de azul, os leões nunca mais
deixaram de falar do «sete-a-um» e os benfiquistas acabaram campeões...
Quase que era caso para dizer que no final todos foram felizes... Mas
alguém consegue ser realmente feliz depois de sofrer sete golos?