terça-feira, agosto 10, 2010

Rui Knopfli


Conheci o Rui Knopfli em Londres, em 1990. Conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal desde 1975, era uma figura prematuramente frágil, nos seus 58 anos de então. Vergado e cansado, pendurado num eterno cigarro, tinha o mais caótico gabinete de que tenho memória. Homem de vícios que o foram debilitando, mantinha uma ironia cáustica e, sendo de trato fácil, era de condução diária difícil, pelos corredores da rotina diplomática a que nunca se acomodara verdadeiramente.

Eternizado em posto em Londres, aposto que olhava para nós, companheiros episódicos, saídos da "carreira", com o olho arguto do artista, estudando-nos para nos sobreviver, até que fôssemos substituídos. Várias vezes "me passei" com os seus descuidos, das tropelias do eterno cão às suas frequentes ausências, para além de algumas teimosas presenças ainda mais complicadas. Mas nunca me zanguei com ele. Ficámos amigos, creio.

O Rui era um fotógrafo magnífico - vale a pena ver o seu livro sobre a ilha de Moçambique - e tinha um ouvido apurado e atento ao jazz, área onde me deu a conhecer algumas excelentes novidades. Da sua terra moçambicana, contava histórias interessantes e divertidas, tributárias desse mundo que sempre lhe ficou nos genes e na escrita. Como ele próprio dizia: "Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doença incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuinamente portugueses mascara-se a doença, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo".

Rui Knopfli foi um grande poeta, português e moçambicano. A sua "Obra Poética" está publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, com um prefácio magistral do Luis de Sousa Rebelo, há meses desaparecido. Para abrir o apetite à sua leitura, nestes tempos de férias, deixo aqui o seu delicioso (e trágico) "Justerini & Brooks":


Este punhal de veludo,
esta fria estalactite,
esta cicuta tão lenta
e que tão profundamente
fere. Esta lâmina

líquida, doirada,
este filtro parecido ao sol,
este rarefeito odor simultâneo
ao fumo, à água, à pedra.
Este adormecer antes do sono,

só preâmbulo da vigília,
que é o gélido acordar
da imaginação para
as fronteiras dormentes
do horizonte protelado.

Este trajecto subterrâneo e húmido
pelos túneis do infortúnio,
que é o adiar moroso
da morte, no prolongar
silencioso da vida,

lágrimas da noite tornadas
pranto da madrugada,
rumor débil e distante
brandindo já no sangue
o endurecer das artérias.


Rui Kopfli morreu em Lisboa, em 1997.

in Blog duas ou três coisas - post do Embaixador Francisco Seixas da Costa

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