Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)
Serena, mas com a fúria de uma Ana Magnani ou da padeira de Aljubarrota. Inscrevia-se num "poema ininterrupto" desde a Idade Média. Tinha um conhecimento raro do que a precedia. É uma das vozes mais plenas e radicais da poesia portuguesa do século XX.
Fiama?
Ninguém se chamava assim na Carcavelos dos anos 30 (ou depois). De algum lado tinha que vir, veio de uma madrinha italiana, tia-avó por afinidade, eis a pequena história.
Mas o que há neste nome disse-o Eduardo Lourenço. Se a poesia é "a palavra infinita" que alude à matéria "sem jamais a poder colher", "a de Fiama, como um milagre, é a rosa mesma da realidade como uma chama" - "A que o seu nome mágico a predestinava."
Nascida a 15 de agosto de 1938, Fiama Hasse Pais Brandão, uma das vozes mais plenas e radicais da poesia portuguesa do século XX, também dramaturga, ficcionista, ensaísta e tradutora, morreu ao princípio da noite de sexta-feira numa casa de repouso-clínica em Algés. Tinha a doença de Parkinson, acelerada por uma fractura há seis anos. Nos últimos tempos já não comunicava.
O corpo será velado até ao princípio da tarde de hoje na Biblioteca do Palácio das Galveias, em Lisboa, onde às 14.15 horas Luís Miguel Cintra vai dizer poemas. Segue depois para o Cemitério dos Prazeres.
A Obra Breve de Fiama - 766 páginas de poesia na mais recente edição, da Assírio & Alvim - termina em agosto de 2000, junto ao mar do Algarve, com estes versos: "Hoje, / meu dia, o coração e o dia rejubilam."
Foi no último Verão de praia, ao lado de Gastão Cruz, poeta, ensaísta, primeiro marido, pai dos seus dois filhos e cúmplice até ao fim.
Conheceram-se na Faculdade de Letras de Lisboa no fim dos anos 50. Os pais de Fiama tinham uma pequena quinta, a Vivenda Azul, em Carcavelos, recorda Gastão. Ela andara na St. Julliard School, onde Paula Rego foi uma das suas primeiras amigas. Havia sido uma brilhante aluna de liceu, de ganhar prémios nacionais.
Na faculdade (que nunca chegou a acabar), Fiama (Hasse de um longínquo parente alemão) opta por Germânicas. A aventura poética começa em partilha. Publica o seu primeiro livro, Morfismos, na colectânea Poesia 61, que inclui Luiza Neto Jorge, Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta e Gastão Cruz.
O ano seguinte é das greves estudantis, com centenas de estudantes presos, incluindo a serena Fiama. Serena mas segura, recorda Veiga Ferreira:
"Uma PIDE chamada Madalena despejou-lhe a mala e ela disse-lhe: "Agora volte a pôr tudo lá dentro."
Impunha a autoridade de uma forma veemente."
E irritava-se, "um verbo que lhe vai bem", diz Jorge Silva Melo, que a conheceu anos depois.
"Uma vez fui agredido por um colega no átrio da faculdade e ela veio desembestada, queria bater-lhe. Tinha aquele ar de senhora frágil, simbolista do fim do século XIX, mas era uma mulher de armas. Havia nela uma determinação radical, como no poema da padeira de Aljubarrota. Podia parecer a Delphine Seyrig muito delicada no India Song mas tinha um lado Ana Magnani e quando se opunha às coisas era de uma violência justa, fantástica."
Jorge Silva Melo foi vendo os poemas a acontecer.
"Se calhar o livro de durante a minha vida é a poesia toda da Fiama." Que começa melódica (e musicada por Lopes Graça e Adriano Correia de Oliveira) e recusa a melodia, para nos últimos livros chegar ao essencial.
"Comecei palavra a palavra", escreveu Fiama. "Assim: "Água significa ave". A Poesia estava quase numa única imagem que coincidia quase com uma única palavra."
Depois, aconteceu "a grande sucção do cérebro para a fronte e para a testa como para um lago", ao longo dos anos 60, "nesse decénio memorável" em que sentia a poesia a expandir-se na cabeça. Os versos tornaram-se longos.
Um teatro que pertence "ao futuro"
Com um conhecimento raro do que a precedia, Fiama inscrevia-se num "poema ininterrupto" desde a Idade Média. E chamaram-lhe hermética.
"Mas foi um período fulcral para voltar a rebentar na contemplação da vida no seu quintal, em Cenas Vivas", diz Jorge Silva Melo.
Até lá a obra breve é vasta, enquanto trabalhava como bibliotecária/arquivista no Centro de Estudos Linguísticos da Universidade de Lisboa, seu emprego ao longo de 20 anos.
Além da poesia, por exemplo, as oito peças que escreveu pertencem "ao futuro", antecipa Silva Melo, "agora não temos ainda os meios de as fazer, como aconteceu a
Lorca com as primeiras peças".
Lorca que Fiama traduziu, como
Brecht ou
O Cântico Maior, assim tão ampla foi a sua atenção.
Tanto poetas como tradutores mais novos falam na sua generosidade. As versões de Hölderlin e Rilke de Maria Teresa Dias Furtado nascem do encorajamento de Fiama.
Tinha nas retinas
"o mais completo dicionário / do Todo. / Esse todo que é dela um deus sem máquina / e está nas palavras de todos em reunião com o mundo", escreveu Armando Silva Carvalho -
"pois não sei de outra figura viva e mais destacada / dos e nos nomes que se dão aos enigmas / da natureza e da sabedoria."
Foram amigos, ele tentou levá-la a dançar e ao teatro de revista, o que nunca aconteceu, talvez por haver nela "desejo e depois retraimento", mas sempre "uma grande espontaneidade". Até ao fim teve "um sorriso quase infantil, muitíssimo directo".
Em 12 anos de vida comum, Veiga Ferreira viu-a sempre escrever em papéis soltos, que passava à máquina emendando pouco, e a poesia nascia de tudo. "Uma vez arrancou com a Poesia Toda do Herberto no capô, o livro caiu, e daí apareceu uma coisa muito poética, sobre quando a poesia cai."
Na praia, como nesta fotografia, é que a imagina.
Alexandra Lucas Coelho - Público 20.01.2007 (daqui)