Mãe! Vem ouvir...
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a
contar histórias ricas que ainda não viajei! Traze tinta encarnada para
escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro,
encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os
degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da
nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado. Tu a coseres e eu a
contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as
que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e
dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa
casa. Como a mesa. Eu também quero Ter um feitio que sirva exatamente
para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
in A Invenção do Dia Claro (1921) - José de Almada Negreiros
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