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Noite Sangrenta é a designação pela qual ficou conhecida a revolta radical de marinheiros e arsenalistas, que ocorreu em Lisboa a 19 de outubro de 1921, no decurso da qual foram assassinados, entre outros, António Granjo, então presidente do Ministério, Machado Santos e José Carlos da Maia, dois dos históricos da Proclamação da República Portuguesa, o comandante Freitas da Silva, secretário do Ministro da Marinha, e o coronel Botelho de Vasconcelos, antigo apoiante de Sidónio Pais no Arsenal da Marinha.
Na origem da revolta estive a demissão do governo de Liberato Damião Ribeiro Pinto,
e a sua condenação a um ano de detenção (confirmada a 10 de setembro
de 1921 pelo Conselho Superior de Disciplina do Exército), um conjunto
de militares ligados àquela força policial, a que se juntaram militares
do Exército e da Armada, se sublevou.
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A infame camioneta (imagem daqui)
19 de outubro de 1921
O 19 de outubro de 1921 foi o fim da 1ª República. Formalmente ela
continuou até 28 de maio de 1926. Pelo meio, alguns episódios grotescos
de um regime em degenerescência: as governações de António Maria da
Silva, o carbonário tornado o chefe todo poderoso do PRP e dos
respetivos caciques, diretas ou por interpostos testas de ferro; a
eleição de Teixeira Gomes para a Presidência da República, uma manobra
de Afonso Costa para tentar regressar ao poder; a renúncia de Teixeira
Gomes quando percebeu que nem conseguia o regresso de Afonso Costa, nem
passaria de um títere nas mão do odiado chefe do PRP: renunciou e
abandonou o país no primeiro barco que zarpou da barra de Lisboa com
destino ao estrangeiro.
Entre o assassinato de Sidónio Pais e os massacres de 19 de outubro de
1921, Portugal, teoricamente um regime parlamentar, viveu sob uma
ditadura tutelada pelos arruaceiros e rufias dos cafés e tabernas de
Lisboa e pela Guarda Nacional Republicana, uma Guarda Pretoriana do
regime, bem municiada de artilharia e armamento pesado, concentrada na
zona de Lisboa e cujos efetivos passaram de 4.575 homens em 1919 para
14.341 em 1921, chefiados por oficiais «de confiança», com vencimentos
superiores aos do exército. A queda do governo de Liberato Pinto, o
principal cacique e mentor da GNR, em fevereiro de 1921, colocou as
instituições democráticas na mira dos arruaceiros e pretorianos do
regime a que se juntaram sindicalistas, anarquistas, efetivos do corpo
de marinheiros, etc.. O governo de António Granjo, formado a 30 de agosto, era o alvo.
O nó górdio foi o caso Liberato Pinto, entretanto julgado e condenado
em Conselho de Guerra por causa das suas atividades conspirativas.
Juntamente com o Mundo, a Imprensa da Manhã, jornal sob a
tutela de Liberato Pinto, atacavam diariamente o governo, tentando
provar, através de documentos falsos, que o Governo projetava o cerco
de Lisboa por forças do Exército, para desarmar a Guarda Nacional
Republicana. No Diário de Lisboa apareceram, entretanto, algumas
notas relativas ao futuro movimento. Em 18 de agosto, um informador
anónimo dizia da futura revolta: «Mot d'ordre: a revolução é a última. Depois, liquidar-se-ão várias pessoas».
O coronel Manuel Maria Coelho era o chefe da conjura. Acompanhavam-no,
na Junta, Camilo de Oliveira e Cortês dos Santos, oficiais da G.N.R.,
e o capitão-de-fragata Procópio de Freitas. O republicanismo histórico
do primeiro aliava-se às forças armadas, que seriam o pilar da
revolução. Depois de uma primeira tentativa falhada, em que alguns dos
seus chefes foram presos e libertados logo a seguir, o movimento de 19 de outubro de 1921 desenrolou-se num dia apenas, entre a manhã e a noite.
Três tiros de canhão disparados da Rotunda pela artilharia pesada da
GNR tiveram a sua resposta no Vasco da Gama. Passavam à ação as
duas grandes forças da revolta. A Guarda concentrou os seus elementos
na Rotunda; o Arsenal foi ocupado pelos marinheiros sublevados, que não
encontraram qualquer resistência; núcleos de civis armados percorreram
a cidade em serviço de vigilância e propaganda. Os edifícios públicos,
os centros de comunicações, os postos de comando oficiais caíram
rapidamente em poder dos sublevados. Às 09.00 horas, uma multidão de soldados,
marinheiros e civis subiu a Avenida para saudar a Junta vitoriosa.
Instalado num anexo do hospital militar de Campolide, o seu chefe, o
coronel Manuel Maria Coelho, presidia àquela vitória sem luta.
Em face da incapacidade de resistir, às dez da manhã, António Granjo escreveu ao Presidente da República: «Nestes
termos, o governo encontra-se sem meios de resistência e defesa em
Lisboa. Deponho, por isso, nas mãos de V. Ex.a a sorte do Governo...» António José de Almeida respondeu-lhe, aceitando a demissão: «Julgo
cumprir honradamente o meu dever de português e de republicano,
declarando a V. Ex.a que, desde este momento, considero finda a missão
do seu governo...» Recebida a resposta, António Granjo retirou-se para sua casa. Eram duas da tarde.
O PR recusou-se a ceder aos sublevados. Afiançou que preferiria
demitir-se a indigitar um governo imposto pelas armas. Às onze da
noite, ainda sem haver solução institucional, Agatão Lança avisou
António José de Almeida que algo de grave se estava a passar. Perante
tal, conforme descreveu depois o PR, «Corri ao telefone e investi o
cidadão Manuel Maria Coelho na Presidência do Ministério, concedendo-lhe
os poderes mais amplos e discricionários para que, sob a minha inteira
responsabilidade, a ordem fosse, a todo o transe, mantida».
Passando a palavra a Raul Brandão (Vale de Josafat, págs. 106-107), «Depois
veio a noite infame. Veio depois a noite e eu tenho a impressão nítida
de que a mesma figura de ódio, o mesmo fantasma para o qual todos
concorremos, passou nas ruas e apagou todos os candeeiros. Os seres
medíocres desapareceram na treva, os bonifrates desapareceram, só
ficaram bonecos monstruosos, com aspetos imprevistos de loucura e
sonho...».
Sentindo as ameaças que se abatiam sobre ele, António Granjo buscou
refúgio na casa de Cunha Leal. Cunha Leal tinha simpatias entre os
revoltosos (tinha aliás sido sondado para ser um dos chefes do
movimento, mas recusara) e Granjo considerou-se a salvo. Todavia, a
denúncia de uma porteira guiou os seus perseguidores que tentaram entrar
na casa de Cunha Leal para deter António Granjo. Cunha Leal
impediu-os, mas a partir desse momento ficaram sem possibilidades de
fuga porque, pouco a pouco, o cerco apertara-se e grupos armados
vigiavam a casa. Apelos telefónicos junto de figuras próximas dos
chefes da sublevação, que pudessem dar-lhes auxílio, não surtiram
efeito.
Perto das nove da noite compareceu um oficial da marinha, conhecido de ambos, que afirmou que levaria Granjo para bordo do Vasco da Gama,
um lugar seguro. Cunha Leal vacilou. Granjo mostrou-se disposto a
partir. Cunha Leal acompanhou-o, exigindo ao oficial da marinha que
desse a palavra de honra de que não seriam separados. Meteram-se na
camioneta que afinal não os levaria ao refúgio do Vasco de Gama, mas ao
centro da sublevação.
A camioneta chegou ao Terreiro do Paço onde os marinheiros e os
soldados da Guarda apuparam e tentaram matar António Granjo. Cunha Leal
conseguiu então salvá-lo. A camioneta entrou, por fim, no Arsenal e os
dois políticos passaram ao pavilhão dos oficiais. Um grupo rodeou Cunha
Leal e separou-o de Granjo, apesar dos seus protestos. Os seus brados
levaram a que um dos sublevados disparasse sobre ele, atingindo-o três
vezes, um dos tiros, gravemente, no pescoço. Foi conduzido ao posto
médico do Arsenal.
Entretanto, vencida a débil resistência de alguns oficiais, marinheiros
e soldados da GNR invadiram o quarto onde estava António Granjo e
descarregaram as suas armas sobre ele. Caiu crivado. Um corneteiro da
Guarda Nacional Republicana cravou-lhe um sabre no ventre. Depois,
apoiando o pé no peito do assassinado, puxou a lâmina e gritou: «Venham ver de que cor é o sangue do porco!»
A camioneta continuou a sua marcha sangrenta, agora em busca de Carlos
da Maia, o herói republicano do 5 de outubro e ministro de Sidónio
Pais. Carlos da Maia inicialmente não percebeu as intenções do grupo de
marinheiros armados. Tinha de ir ao Arsenal por ordem da Junta
Revolucionária. Na discussão que se seguiu só conseguiu o tempo
necessário para se vestir. Então, o cabo Abel Olímpio, o Dente de Ouro,
agarrou-o pelo braço e arrastou-o para a camioneta que se dirigiu ao
Arsenal. Carlos da Maia apeou-se. Um gesto instintivo de defesa
valeu-lhe uma coronhada brutal. Atordoado pelo golpe, vacilou, e um tiro
na nuca acabou com a sua vida.
A camioneta, com o Dente de Ouro por chefe, prosseguiu na sua missão macabra. Era seguida por uma moto com sidecar, com repórteres do jornal Imprensa da Manhã. Bem informados como sempre, foram os próprios repórteres que denunciaram: «Rapazes, vocês por aí vão enganados... Se querem prender Machado Santos venham por aqui...». Acometido pela soldadesca, Machado Santos procurou impor a sua autoridade: «Esqueceis que sou vosso superior, que sou Almirante!». Dente de Ouro foi seco: «Acabemos com isto. Vamos». Machado Santos sentou-se junto do motorista, com Abel Olímpio, o Dente de Ouro, a seu lado. Na Avenida Almirante Reis, a camioneta imobiliza-se devido a avaria no motor. Dente de Ouro e os camaradas não perdem tempo. Abatem ali mesmo Machado Santos, o herói da Rotunda.
Não encontraram Pais Gomes, ministro da Marinha. Prenderam o seu
secretário, o comandante Freitas da Silva, que caiu, crivado de balas, à
porta do Arsenal. O velho coronel Botelho de Vasconcelos, um apoiante
de Sidónio, foi igualmente fuzilado. Outros, como Barros Queirós,
Cândido Sotomayor, Alfredo da Silva, Fausto Figueiredo, Tamagnini
Barbosa, Pinto Bessa, etc., salvaram a vida por acaso.
Os assassinos foram marinheiros e soldados da Guarda. Estavam tão
orgulhosos dos seus atos que pensaram publicar os seus nomes na Imprensa da Manhã,
como executores de Machado Santos. Não o chegaram a fazer devido ao
rápido movimento de horror que percorreu toda a sociedade portuguesa
face àquele massacre monstruoso. Mas quem os mandou matar?
O horror daqueles dias deu lugar a uma explicação imediata, simples e
porventura correta: os assassínios de 19 de outubro tinham sido a
explosão das paixões criadas e acumuladas pelo regime. Determinados
homens mataram; a propaganda revolucionária impeliu-os e a explosão da
revolução permitiu-lhes matar. No enterro de António Granjo, Cunha Leal
proclamou essa verdade: «O sangue correu pela inconsciência da
turba — a fera que todos nós, e eu, açulámos, que anda solta, matando
porque é preciso matar. Todos nós temos a culpa! É esta maldita política
que nos envergonha e me salpica de lama». No mesmo ato, afirmaria Jaime Cortesão: «Sim,
diga-se a verdade toda. Os crimes, que se praticaram, não eram
possíveis sem a dissolução moral a que chegou a sociedade portuguesa».
Com o tempo, os republicanos procuraram outras explicações. Não podiam
aceitar a explicação simples que teria sido a sua ação, o radicalismo
da sua política, a imundície que haviam lançado desde 1890 sobre toda a
classe política, a sua retórica de panegírico aos atentados bombistas
(desde que favoráveis), aos regicidas, a desencadear tanta
monstruosidade. Significava acusarem-se a si próprios. Outras
explicações foram aparecendo, sempre mais tortuosas, acerca dos
eventuais culpados: conspiração monárquica; Cunha Leal (apesar de ter
sido quase morto); Alfredo da Silva (apesar de, nessa noite, ter
escapado à justa e tido que se refugiar em Espanha) uma conspiração
monárquica e ibérica; a Maçonaria (a ação da Maçonaria sobre a
Guarda, impelindo-a para a revolução, era constante, mas isso não
significa que desse ordens para aqueles crimes)
Os assassinados na Noite Sangrenta não seriam, entre os republicanos,
aqueles que mais hostilidade mereceriam dos monárquicos. Eram
republicanos moderados. O furor dos assassinos liquidara homens tidos,
na sua maior parte, como simpatizantes do sidonismo. Não se tratava de
vingar outubro de 1910, mas sim dezembro de 1917. Carlos da Maia e
Machado Santos foram ministros de Sidónio Pais. Botelho de Vasconcelos,
coronel na Rotunda, às ordens de Sidónio Pais. Se as matanças de 19 de
outubro de 1921 foram uma vingança terão de ser referenciadas à
República Nova e não ao 5 de outubro. Aliás, num gesto significativo, os
revolucionários libertaram o assassino de Sidónio Pais.
Há na Noite Sangrenta factos que se impõem de maneira evidente. A 20 de outubro, a Imprensa da Manhã
reivindicou para si a glória de ter preparado o movimento, mas
repudiou as suas trágicas consequências, especialmente a morte de
Granjo. Ora anteriormente, dia após dia, aquele diário havia acusado e
ameaçado Granjo, injuriando-o sistematicamente. Como podia agora lavar
as mãos da sua morte? Aliás, a atitude dos assassinos foi concludente:
depois de matarem Machado Santos, dirigiram-se na camioneta da morte à Imprensa da Manhã
para lhe agradecerem o apoio e para aquela publicar os nomes dos que
tinham fuzilado o Almirante. Um deles confessou mais tarde que Machado
Santos havia sido localizado por informações de jornalistas da Imprensa da Manhã.
Os assassinos procuravam a satisfação e a glória de uma obra
realizada, no diário matutino onde se proclamara a necessidade dessa
realização.
Os assassinos nunca esperaram ser castigados. Mesmo durante o
julgamento sempre esperaram a absolvição. Quando foram condenados, entre
gritos de vingança e de apoio à «República radical», alguns acusaram
altos oficiais de não terem autoridade moral para os condenarem, pois
estavam por detrás da carnificina. Os assassinos tinham, de certo modo,
razão: eles tinham agido dentro da lógica que o republicanismo tinha
instilado neles. Em todos os regimes que nascem e se sustentam no crime e
no terror (por muito justa que a causa possa ser), há sempre o momento
(ou os momentos) em que a revolução devora os próprios filhos.
Para terminar devo referir que nem Manuel Maria Coelho, nem nenhum dos
«outubristas», conseguiu formar um governo estável. O horror fez todos
os nomes sonantes recusarem fazer parte de um governo de assassinos.
Menos de dois meses depois da revolução, António José de Almeida, em 16
de dezembro de 1921, entregou a chefia do ministério a Cunha Leal.
A GNR foi pouco a pouco desmantelada e reduzida a uma força de policiamento rural.
A república ficara ferida de morte.
in Semiramis
NOTA: a república e os republicanos tentaram, durante anos, apagar este triste episódio da História de Portugal (e continuam ainda - as referências ao mesmo vão sendo, sucessivamente, expurgadas misteriosamente dos
livros e da Internet...); felizmente há quem não deixe esquecer este
momento, que ilustra muito bem o que foi a bandalheira da I república e
dos seus adeptos. Havendo ainda alguns que preservam e defendem a sua
memória, há que recordar, na sua totalidade, este período trágico da nossa
História que foi a I república em Portugal.
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