07.11.2007 - 19h51 - Ana Fonseca Pereira
Todos os anos, milhões de pequenas papoilas de papel são vendidas por voluntários da Legião Real Britânica, a maior associação de apoio a ex-combatentes do país, numa campanha de angariação de fundos (a “Poppy Appeal”) para custear a assistência a milhares de antigos e actuais militares. Os voluntários saem para as ruas nas semanas que antecedem o Dia da Memória, a 11 de Novembro, quando são recordados os que combateram nas duas guerras mundiais e também os que perderam a vida nos recentes conflitos das Malvinas, Iraque e Afeganistão.
A primeira homenagem aos militares mortos no campo de batalha foi celebrada em 1919, um ano depois do armistício – celebrado à “11ª hora do 11ª dia do 11º mês” – que pôs fim a quatro anos da mais devastadora guerra que o Velho Continente assistira até então, com milhões de mortos e centenas de milhares de estropiados. Mas só dois anos mais tarde, a papoila vermelha se tornaria no símbolo das comemorações, numa associação que curiosamente nasceu do outro lado do Atlântico.
Um poema de sangue
A I Guerra Mundial estava a dias de terminar quando Moina Michael, uma professora americana que trabalhava como voluntária do YMCA (organização humanitária cristã) em Nova Iorque, leu numa revista o poema de John McCrae (1872-1918), um médico do contingente canadiano estacionado na frente de batalha belga.
O poema fora escrito em Maio de 1915, dias depois da segunda batalha de Ipres (Leste da Bélgica), que vitimara milhares de soldados, entre eles o tenente Alexis Helmer, amigo do médico canadiano.
Pouco depois de ter enterrado o amigo, McCrae, sentado nas traseiras de uma ambulância, escreveu em 20 minutos as 15 linhas de um poema que se tornaria elegia aos milhares de jovens que tombaram nos campos de batalha onde nada crescia, à excepção de rubras papoilas. “Nos campos da Flandres crescem papoilas/entre as cruzes que, fila a fila, marcam o nosso lugar (...)”, escreve o médico, narrando a morte em seu redor. O poema termina dizendo: “se trairdes a fé de nós que morremos/Jamais dormiremos, ainda que cresçam papoilas/ Nos campos da Flandres”.
Publicado meses depois na revista inglesa “Punch”, sob o título “Os Campos da Flandres”, o poema ganha rápida popularidade e aclamação unânime. A elegia associa pela primeira vez a memória às papoilas vermelhas, flores silvestres e delicadas cujas sementes resistem anos no subsolo até que são expostas à luz, o que acontecia nas frentes de batalha por acção dos obuses que caíam impiedosos sobre as trincheiras, repetindo um cenário que se espalhara pela Europa durante as Guerras Napoleónicas. A sua cor vermelha mistura-se com o sangue dos mortos, relembrando antigos mitos que associavam a papoila ao sacrifício humano, mas também ao renascimento depois da morte.
O nascimento de um símbolo
Emocionada pelo poema e pela notícia da morte de McCrae – em Janeiro de 1918, vítima de pneumonia e meningite – Moina Michael escreveu uma réplica ao oficial canadiano, sob o título “Manteremos a fé”, lançando a ideia de promover a papoila como promessa de manter na lembrança todos os que morreram na Grande Guerra. Moina comprou numa loja de Nova Iorque pequenas papoilas de papel, colocou uma na lapela e vendeu as outras a voluntárias da associação, iniciando assim uma campanha para que a pequena flor se tornasse símbolo nacional de recordação. Esse objectivo é alcançado em 1920 quando a Legião Americana a adopta como emblema da sua convenção anual.
Presente no encontro estava a francesa Anne Guerin, dirigente de uma associação de apoio a viúvas e órfãos da guerra que, inspirada pelo exemplo de Moina, decide promover a flor como símbolo internacional de homenagem às vítimas de conflitos armados. Mas mais do que um ícone, Guerin viu na pequena papoila uma forma de auxiliar os sobreviventes do conflito e, em breve, a sua associação começou a produzir flores em papel para serem vendidas por grupos de veteranos dos países envolvidos no conflito.
Em 1920 e 1921, Guerin convenceu vários membros da Commonwealth a adoptar o novo símbolo, fornecendo às associações de veteranos as flores produzidas pelas viúvas das zonas devastadas pela Guerra. Nos anos seguintes, contudo, a maioria das associações começaria a fabricar as suas próprias insígnias, uma tarefa que pela sua simplicidade podia ser cumprida pelos muitos mutilados de guerra que não conseguiam arranjar outro emprego.
”Poppy Appeal”
No Reino Unido – o país que a par do Canadá mais viva mantém a tradição – as flores continuam a ser produzidas na Fábrica de Papoilas, uma instituição criada em 1922 pelo major George Howson, fundador da associação de apoio ao deficiente das forças armadas. Instalada em Richmond, no Surrey, a fábrica emprega 42 trabalhadores, a maioria deficientes, tendo produzido na campanha do ano passado 36 milhões de papoilas que, entre outras iniciativas, renderam 26 milhões de libras (37,3 milhões de euros).
Os fundos da campanha – que se estende até 11 de Novembro – representam um terço do orçamento das acções de apoio da Real Legião. Este ano, a associação de veteranos espera elevar o montante angariado para o novo recorde de 27,5 milhões de libras (39,5 milhões de euros), sustentando que o número de baixas registado nos conflitos do Iraque e do Afeganistão “mostram que o trabalho da Liga é mais necessário do que nunca”.
Mas na era da Internet, as papoilas em papel começam a ter rivais virtuais e, nos últimos anos, é possível receber fotografias da pequena flor vermelha no telemóvel e no e-mail para quem fizer doações através de “SMS” ou correio electrónico. Também as comemorações do Dia da Memória – que este ano coincide com um domingo, dia das tradicionais cerimónias militares – pode também já ser vivido de forma virtual, já que a Legião criou no Second Life um memorial idêntico ao Cenotaph instalado desde 1920 em Whitehall, no centro de Londres.
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