Biografia
Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu, por acaso, na Vila Edith, na Estrada da Damaia, em
Benfica, onde os pais estavam a passar férias. Último filho (três irmãs mais velhas) de Viriato de Vasconcelos, natural de
Tondela, e da sua mulher, María de las Mercedes Cesariny (de ascendência paterna
corsa e materna
espanhola), natural de
Paris. O pai, com uma personalidade dominadora e pragmática, era
empresário e
ourives, com loja e oficina na
Rua da Palma, na freguesia de
Santa Justa, em plena baixa
lisboeta.
Depois da escola primária, o jovem Mário frequentou durante um ano o Liceu Gil Vicente, após o que o pai (que o queria ourives) o mudou para um curso de cinzelagem na
Escola de Artes Decorativas António Arroio (onde conheceu
Artur do Cruzeiro Seixas e
Fernando José Francisco), que completou. Depois, como não lhe agradasse o trabalho de ourives, frequentou um curso de habilitação às Belas-Artes. Também estudou música, gratuitamente, com o compositor
Fernando Lopes Graça. Cesariny era um talentoso pianista, mas o pai, enfurecido, proibiu-o de continuar esses estudos. Entretanto, no final da adolescência, Cesariny e os amigos frequentam várias tertúlias nos cafés de Lisboa e descobrem o
neo-realismo e depois o
surrealismo.
Em
1947, Cesariny viaja até
Paris onde frequenta a
Académie de la Grande Chaumière e conhece
André Breton, cuja influência o leva a participar na criação, no mesmo ano, do
Grupo Surrealista de Lisboa, juntamente com figuras como
António Pedro,
José Augusto França,
Cândido Costa Pinto,
Vespeira,
João Moniz Pereira e
Alexandre O´Neill, que reuniam na
Pastelaria Mexicana. Este grupo surgiu como forma de protesto libertário contra o regime
salazarista e contra o
neo-realismo, dominado pelo
Partido Comunista Português, de tendência
estalinista. Mais tarde, funda o antigrupo (dissidente)
Os Surrealistas do qual fazem parte entre outros os seguintes autores:
António Maria Lisboa,
Risques Pereira,
Artur do Cruzeiro Seixas,
Pedro Oom,
Fernando José Francisco e
Mário-Henrique Leiria.
É nesta altura também que Viriato, seu pai, abandona a família para se fixar no
Brasil com uma amante. Isto faz com que Mário se aproxime mais de sua mãe e, da sua irmã Henriette.
Na década de 1950, Cesariny dedica-se à pintura, mas também, e sobretudo, à poesia, que escreve nos cafés. Tem colaboração na revista
Pirâmide (1959-1960). O seu editor é
Luiz Pacheco, com quem mais tarde (nos anos 1970) se incompatibilizaria por completo. É também durante esse período que começa a ser incomodado e a ser vigiado pela
Polícia Judiciária, por "suspeita de
vagabundagem", obrigado a humilhantes apresentações e interrogatórios regulares, devido à sua
homossexualidade, que vivencia diariamente, de modo franco e destemido. Só a partir do
25 de abril de 1974 deixará de ser perseguido e atormentado pela polícia.
Cesariny vivia com dificuldades financeiras, ajudado pela família. Apesar da excelência da sua escrita, esta não o sustentava financeiramente e Cesariny, a partir de meados dos anos 1960, acabaria por se dedicar por inteiro à pintura, como modo de subsistência.
A partir da década de 1980, a obra poética de Cesariny é reeditada pelo editor
Manuel Hermínio Monteiro e redescoberta por uma nova geração de leitores.
Nos últimos anos da sua vida, Cesariny viveu com a sua irmã mais velha, Henriette (falecida em 2004). Ao contrário do que acontecia anteriormente, abriu-se aos meios de comunicação, dando frequentes entrevistas e falando sobre a sua vida íntima. Em
2004,
Miguel Gonçalves Mendes realizou o documentário
Autografia, filme intenso e comovente onde Cesariny se expõe e revela de modo total.
Figuras de Sopro, 1947, óleo sobre cartão
Obra
Mário Cesariny adopta uma atitude estética de constante experimentação nas suas obras e pratica uma técnica de escrita e de (des)pintura amplamente divulgada entre os surrealistas. A sua poesia é animada por um sentido de contestação a comportamentos e princípios institucionalizados ou considerados normais nos campos do pensamento e dos costumes. Ao recorrer a processos tipicamente surrealistas (enumerações caóticas, utilização sistemática do sem-sentido ou do humor negro, formas paródicas, trocadilhos e outros jogos verbais, automatismo, etc.) alcança uma linguagem que sabe encontrar o equilíbrio entre o quotidiano e o insólito. Introduz também a técnica designada “
cadáver esquisito”, que consiste na construção de uma obra por três ou quatro pessoas, num trabalho em cadeia criativa em que cada um dá continuidade, em tempo real, à criatividade do anterior, conhecendo apenas parte do que este fez.
Nos últimos anos de vida, desenvolveu uma frenética actividade de transformação e reabilitação do real quotidiano, da qual nasceram muitas colagens com pinturas, objectos, instalações e outras fantasias materiais.
Sobre as sessões para que o convidavam e em que o aplaudiam, o poeta comentava: Estou num pedestal muito alto, batem palmas e depois deixam-me ir sozinho para casa. Isto é a glória literária à portuguesa.
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Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte......violar-nos.....tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas.....portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida......há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
in Pena Capital (1957) - Mário de Cesariny de Vasconcelos