quarta-feira, abril 07, 2021

Pintura, com poema acoplado, alusivo à data...

El entierro del Conde de Orgaz - El Greco, 1587
     
   
Solilóquio de Greco no Enterro do Conde de Orgaz
    
    
Quatrocentos anos depois, importa-me
digam ser a minha
a arte do desmembramento e ascensão nucleares,
levítica, alienada? Ou alguém hesite
pelos séculos entre este finado e as Meninas
de Velázquez? Quantos apaixonei por mim
ao unir terra e céu na mesma fraternidade mal-afortunada,
ao tornar aderente a divindade
como fruto que conserva parte da sua flor
e espoliar-me do quinto sigilo,
dos mortos pela palavra de Deus e por seu testemunho.
  
Amigos, os sinais fúnebres, Jorge Manuel,
único filho, com insciência e garbo
de seus oito anos, e sobre o Anjo recolhendo a alma,
a Virgem, minha mulher, Jerónima,
entre Deus e todos os seus Santos.
Essa que pintei com pele de arminho
e cujo cálido rosto pervive com dureza de lioz,
igual quando a possuí e sempre
assumindo a feição de Mãe de Cristo:
fiel a ambas, fiel a nuvens, mãos aladas.
E olho, miraculado, os visitantes de Toledo,
turbas passam, tártaros indiferentes
nesta capela onde sou eu quem dá
a proporção cósmica da beleza.
  
A eles amo por seu bafo
poluente, mas vivo, e aos que me querem
na dúvida de crer ou na mortificação da Graça,
que foi minha. Como desejo ao Tejo
corra com o meu verde, mais exaltado,
e que as casas toledanas mantenham
a cor entre palha e barro, burel de apóstolos,
comunicada pelo restolho na planura.
  
A alma é sombra, um sonho.
Assim figurei vida e morte,
sem descaminho, sem o terrível cheiro de lobos,
ambas perdurando além de toda a mudança.
     
    

in O Lugar do Amor (1981) - António Osório

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