O Regicídio de 1 de fevereiro de 1908, ocorrido na Praça do Comércio (na época mais conhecida por Terreiro do Paço) em Lisboa, marcou profundamente a História de Portugal, uma vez que dele resultou a morte do Rei D. Carlos e do seu filho e herdeiro, o Príncipe Real D. Luís Filipe,
marcando o fim da última tentativa séria de reforma da Monarquia
Constitucional, e consequentemente, uma nova escalada de violência na
vida pública do País.
Antecedentes
O atentado foi uma consequência do clima de crescente tensão que
perturbava o aspecto político português. Dois factores foram
primordiais: em primeiro lugar o caminho traçado desde cedo pelo Partido Republicano Português
como solução para a erosão do sistema partidário vigente, e em segundo
lugar a tentativa, por parte do rei D. Carlos como árbitro do sistema
político, papel que lhe era atribuído pela Constituição, de solucionar os problemas desse mesmo sistema, apoiando o Partido Regenerador Liberal de João Franco
(que viria a instaurar uma ditadura). Desde a sua fundação que o
objectivo primário do Partido Republicano era o da simples substituição
do regime. Esta atitude teve a sua quota parte de responsabilidade no
crime, mas os ânimos foram acirrados pelo estabelecimento de uma
ditadura administrativa, por parte de João Franco, com o apoio do rei,
em 1907.
O progressivo desgaste do sistema político português, vigente desde a Regeneração, em parte devido à erosão política originada pela alternância de dois partidos no Poder: o Progressista e o Regenerador,
agravou-se nos primeiros anos do Século XX com o surgimento de novos
partidos, saídos directamente daqueles. Em 1901 João Franco, apoiado por
25 deputados, abandonou o Partido Regenerador, criando o Partido Regenerador Liberal. Em 1905 surge a da Dissidência Progressista, fundado por José Maria de Alpoim,
que entrou em ruptura com o Partido Progressista, do qual se separou
com mais seis deputados eleitos pelo mesmo partido. À intensa rivalidade
entre os partidos, agravada por ódios pessoais, juntou-se a atitude e
acções críticas do Partido Republicano, contribuindo para o descrédito
do regime, já de si bastante desacreditado devido às dividas da Casa
Real.
Era esta a conjuntura quando D. Carlos se decidiu, finalmente, a ter
uma intervenção activa no jogo político, escolhendo a personalidade de
João Franco para a concretização do sempre falhado programa de vida nova.
Este, dissidente do Partido Regenerador, solicitou ao Rei o
encerramento do Parlamento para poder implementar uma série de medidas
com vista à moralização da vida política. Tal pedido já havia sido antes
feito ao monarca pelos líderes dos dois partidos tradicionais, mas
este sempre recusara, atendendo ao princípio que o rei reina, mas não
governa. Agora, no entanto, D. Carlos achou chegado o momento de
intervir, depositando a sua confiança no homem que julgava à altura e
encerrou o parlamento.
É evidente que o novo governo não podia ser bem recebido pelos que dele
não beneficiariam, pelo que se acirrou toda a oposição, desde os
partidos monárquicos aos republicanos. Estes, aos quais um renovar do
sistema politico monárquico retiraria protagonismo, ou mesmo razão de
ser, vão assumir uma atitude maquiavélica: como então dizia Brito
Camacho, relativamente a João Franco, "havemos de obrigá-lo a
transigências que rebaixam ou às violências que comprometem". Foram
eficazes os ataques pessoais, tanto a D. Carlos como a João Franco,
tanto da parte daqueles, como dos dissidentes progressistas, com os
quais se entenderam. Vão aproveitar a questão dos adiantamentos, logo em novembro de 1906, visando principalmente um ataque à figura do monarca. Mobilizam-se particularmente com a questão da greve académica de 1907. O regicídio foi uma mera consequência indirecta dessa estratégia.
Já marcadas novas eleições, e prevendo-se um resultado favorável ao
partido no poder, como era costume, decidiram-se os republicanos e os
dissidentes pela força, estes apoiaram indirecta ou directamente
organizações secretas como a Carbonária ou a Maçonaria. Esta tentativa
de golpe de estado fracassa, devido à inconfidência de um conspirador. A
28 de janeiro de 1908 são presos vários líderes republicanos, naquele
que ficou conhecido como o Golpe do Elevador da Biblioteca. Afonso Costa e o Visconde de Ribeira Brava
são apanhados de armas na mão no dito elevador, conjuntamente com
outros conspiradores, quando tentavam chegar à Câmara Municipal. António José de Almeida, o dirigente carbonário Luz Almeida, o jornalista João Chagas, João Pinto dos Santos, e Álvaro Poppe
contavam-se entre os noventa e três conspiradores presos. José Maria
de Alpoim consegue fugir para Espanha. Alguns grupos de civis armados,
desconhecedores do falhanço, ainda fizeram tumultos pela cidade.
Em resposta a este golpe, e como reflexo de um endurecer de postura por parte do regime, até aí dominado por um fair play que permitia aos republicanos intervenções livres, o governo apresenta ao rei o Decreto de 30 de Janeiro de 1908.
Este previa o exílio para o estrangeiro ou a expulsão para as
colónias, sem julgamento, de indivíduos que fossem pronunciados em
tribunal por atentado á ordem pública, e tem sido durante muito tempo
considerado como a principal causa para o regicídio. Conta-se que, ao
assiná-lo, o rei declarou: ”Assino a minha sentença de morte, mas os
senhores assim o quiseram.” É de notar, no entanto, que o decreto,
assinado a 30 de janeiro, só foi publicado a 1 de Fevereiro, e os
preparativos para o atentado datam com certeza de antes dessa data:
atente-se ao testamento feito pelo regicida Buíça, datado de 28 de
janeiro.
O Atentado
O Rei, a Rainha e o Príncipe Real encontravam-se então em Vila Viçosa, no Alentejo, onde costumavam passar uma temporada de caça no inverno. O infante D. Manuel
havia regressado dias antes, por causa dos seus estudos como aspirante
na marinha. Os acontecimentos acima descritos levaram D. Carlos a
antecipar o regresso a Lisboa, tomando o comboio, na estação de Vila
Viçosa, na manhã do dia 1 de Fevereiro. Com cuidado para que a sua já
preocupada mãe não se aperceba, o Príncipe real arma-se com o seu
revólver de oficial do exército. Durante o caminho o comboio sofre um
ligeiro descarrilamento junto ao nó ferroviário de Casa Branca. Isto
provocou um atraso de quase uma hora. A comitiva régia chegou ao
Barreiro ao final da tarde, onde tomou o vapor "D. Luís", com destino ao
Terreiro do Paço,
em Lisboa, onde desembarcaram, na Estação Fluvial Sul e Sueste, por
volta das 5 horas da tarde, onde eram esperados por vários membros do
governo, incluindo João Franco, além dos infantes D. Manuel e D. Afonso,
o irmão do rei. Apesar do clima de grande tensão, o monarca optou por
seguir em carruagem aberta, envergando o uniforme de Generalíssimo,
para demonstrar normalidade. A escolta resumia-se aos batedores
protocolares e a um oficial a cavalo, Francisco Figueira Freire, ao
lado da carruagem do rei.
Há pouca gente no Terreiro do Paço. Quando a carruagem circulava junto
ao lado ocidental da praça ouve-se um tiro e desencadeia-se o tiroteio.
Um homem de barbas, passada a carruagem, dirige-se para o meio da rua,
leva à cara a carabina que tinha escondida sob a sua capa, põe o
joelho no chão e faz pontaria. O tiro atravessou o pescoço do Rei,
matando-o imediatamente. Começa a fuzilaria: outros atiradores, em
diversos pontos da praça, atiram sobre a carruagem, que fica crivada de
balas.
Os populares desatam a correr em pânico. O condutor, Bento Caparica, é
atingido numa mão. Com uma precisão e um sangue frio mortais, o
primeiro atirador, mais tarde identificado como Manuel Buíça,
professor primário expulso do Exército, volta a disparar. O seu
segundo tiro vara o ombro do rei, cujo corpo descai para a direita,
ficando de costas para o lado esquerdo da carruagem. Aproveitando isto,
surge a correr de debaixo das arcadas um segundo regicida, Alfredo Costa,
empregado do comércio e editor de obras de escândalo, que pondo o pé
sobre o estribo da carruagem, se ergue à altura dos passageiros e
dispara sobre o rei já tombado.
A rainha,
já de pé, fustiga-o com a única arma de que dispunha: um ramo de
flores, gritando “Infames! Infames!” O criminoso volta-se para o
príncipe D. Luís Filipe, que se levanta e saca do revólver do bolso do
sobretudo, mas é atingido no peito. A bala, de pequeno calibre, não
penetra o esterno (segundo outros relatos, atravessa-lhe um pulmão, mas
não era uma ferida mortal) e o Príncipe, sem hesitar, aproveitando
porventura a distracção fornecida pela actuação inesperada da rainha sua
mãe, desfecha quatro tiros rápidos sobre o atacante, que tomba da
carruagem. Mas ao levantar-se D. Luís Filipe fica na linha de tiro e o
assassino da carabina atira a matar: uma bala de grosso calibre atinge-o
na face esquerda, saindo pela nuca. D. Manuel vê o seu irmão já
tombado e tenta estancar-lhe o sangue com um lenço, que logo fica
ensopado.
A fuzilaria continua. Dª Amélia permanece de pé, gritando por ajuda.
Buíça volta a fazer pontaria (sobre o infante? sobre a rainha?) mas é
impedido de disparar sobre a carruagem pela intervenção de Henrique da
Silva Valente, simples soldado de Infantaria 12, que passava no local, e
que se lança sobre ele de mãos nuas. Na breve luta que se segue o
soldado é atingido numa perna, mas a sua intervenção é providencial.
Tendo voltado o seu cavalo, o oficial Francisco Figueira carrega
primeiro sobre o Costa, que ferido pelo príncipe é atingido por um golpe
de sabre e preso pela polícia, e de seguida dirige-se a Buíça. Este
ainda o consegue atingir numa perna com a sua última bala e tenta fugir,
mas Figueira alcança-o e imobiliza-o com uma estocada.
Com os regicidas imobilizados, o zelo excessivo dos polícias presentes
levou a que acabassem abatidos no local, o que dificultou as
posteriores investigações sobre o atentado. Segundo alguns relatos,
Alfredo Costa já estaria moribundo, mas sabe-se que Manuel Buíça, mesmo
ferido, resistiu à sua apreensão pela polícia. Também vítima da polícia
foi um transeunte inocente, Sabino Costa, empregado de ourivesaria e
monárquico, provavelmente confundido com outro regicida oculto na
multidão. De facto, o condutor, a golpes de chicote, fez arrancar a
carruagem, virando a esquina para a rua do Arsenal, procurando aí
refúgio. É nessa altura que um atirador desconhecido ainda consegue
atingir D. Manuel num braço (segundo outras versões, o tiro de raspão
atingiu-o ainda antes de a carruagem virar para a rua do Arsenal, mas
esse tiro já não podia partir dos dois regicidas mencionados, já a
braços com a polícia). A carruagem entra no Arsenal da Marinha,
onde se verifica o óbito do Rei e o do Herdeiro do Trono. Quando o
Infante D. Afonso, que havia começado a correr desde o seu carro no fim
do cortejo, chegou ao Arsenal, teve como primeiro instinto acusar João
Franco como responsável pela tragédia. A mãe de D. Carlos, a rainha Dª Maria Pia
foi chamada ao Arsenal, onde encontrando-se com Dª Amélia lhe diz
desolada: “Mataram-me o meu filho.”, ao que esta respondeu: “E o meu
também.”
Julgando que se tratava de um novo golpe de estado, a população de
Lisboa refugia-se nas suas casas e a cidade fica deserta. Mas as tropas
permanecem nos quartéis e a situação permanece calma: o atentado não
foi um sinal para o golpe, que já havia sido frustrado, antes o acto de
quem ainda tinha armas na mão, porventura influenciados pela repressão
que se previa da parte do governo. À noite as rainhas e o novo rei
foram escoltados para o palácio das Necessidades,
pois temia-se novo atentado. Depois veio a tarefa macabra de levar os
corpos para o palácio, o que foi feito sentando-os em duas carruagens,
como se fossem vivos, a cabeça de D. Luís Filipe tombando sobre o ombro
do seu tio, o infante D. Afonso, agora o novo Príncipe Real. Não foram
efectuadas autópsias, sendo os corpos embalsamados sob a supervisão do
médico da Casa Real, Tomás de Melo Breyner, tarefa penosa não só pela proximidade às vitimas como também pelo estrago feito pelas balas.
(imagem daqui)
As consequências imediatas
A Europa
ficou revoltada com o regicídio, uma vez que D. Carlos era estimado
pelos restantes Chefes de Estado europeus, e ainda mais pelo facto de
não se ter tratado de um acto isolado, mas sim uma organização
metódica. Jornais de todo o mundo publicam imagens do atentado,
baseadas nas descrições, com elementos mais ou menos fantasiosos, mas
sendo sempre presente a imagem de Dª Amélia, de pé, indiferente ao
perigo, fustigando os assassinos com um frágil ramo de flores. Em
Londres, os jornais exibiam fotos das campas dos regicidas, cobertas de
flores, com a legenda “Lisbon’s shame!”. É preciso não esquecer, para
além do próprio carácter do acto, que se tratava de uma Europa à altura
maioritariamente monárquica. No entanto, no próprio país, a reacção
não foi a esperada, valendo do rei de Inglaterra, Eduardo VII, amigo de D. Carlos e do Príncipe D. Luis Filipe, a frase: “Matam dois cavaleiros da Ordem da Jarreteira na rua como cães e lá no país deles ninguém se importa!”
Após o atentado, pediu a demissão o Governo de João Franco, que não
impedira a morte do Rei. De facto, à imprevidência do chefe de governo
cabe a maior parte das responsabilidades pela falta de uma escolta
adequada, ainda mais tendo em conta o contexto de um golpe falhado,
quando civis armados ainda andariam pela cidade. João Franco sabia-se
alvo de atentados planeados, mas nunca desconfiou que o ódio visava
também o rei. Presidindo ao Conselho de Estado, na tarde de dia 2, com o
braço ao peito e envergando o seu uniforme de aspirante da marinha,
o novo rei D. Manuel II confessou a sua inexperiência e falta de
preparação e pediu orientação ao conselho. Este votou a demissão de João
Franco e a formação de um governo de coligação, a que se chamou o
Governo "de Acalmação", presidido pelo independente contra-almirante Ferreira do Amaral.
Este ministério incluía membros dos partidos Regenerador e
Progressista além de independentes, e visava fazer o país voltar à
normalidade parlamentar, acabando-se o governo em ditadura. De facto
abandonou-se completamente a posição de força seguida por D. Carlos e
pelo seu último ministério: anularam-se as medidas ditatoriais
anteriormente publicadas, soltaram-se os presos politicos,
amnistiaram-se os marinheiros que se haviam revoltado em 1906, e
consentiu-se que se fizessem comícios republicanos em que se fazia a
apologia do atentado e se considerava os assassinos como beneméritos da
Pátria. Outro facto permitido foi a romagem de cerca de vinte e duas
mil pessoas às sepulturas dos regicidas. O evento fora organizado pela
Associação do Registo Civil, que fornecia as flores e dava além de 500
réis a cada pessoa, 200 réis a cada criança que aparecesse junto das
campas.
Esteve presente na reunião do Conselho de Estado que votou estas decisões, e do qual fazia parte, o Marquês de Soveral,
embaixador de Portugal em Inglaterra, e que por acaso se encontrava em
Portugal à altura. Próximo da família real, também votou pela demissão
de João Franco e pelo estabelecimento do Governo de Acalmação. Quando,
pouco tempo depois, reassumiu as suas funções de embaixador e se
encontrou com o rei da Grã-Bretanha, Eduardo VII, também este seu amigo
pessoal, o monarca britânico brindou-o com as palavras: “Então que raio
de país é esse, em que se mata um rei e um príncipe e a primeira coisa
que se faz é demitir o ministério? A revolução triunfou, não é
verdade?" ”Foi só então", diria mais tarde o marquês de Soveral “que
compreendi o erro que tínhamos cometido.”
De facto, ao demitir-se o ministério o regime deu aos republicanos o
argumento de que só eles é que tinham acabado com a ditadura. Depois da
hesitação inicial, em que se chegou a propor um pacto de colaboração
com o regime, cedo voltaram à carga, decidindo em congresso o derrube
pela força do regime: Congresso de Setúbal, 24 a 25 de abril de 1909.
Esta hesitação deveu-se aos próprios conceitos do partido. Aos
republicanos mais distintos, alguns dos quais ficaram verdadeiramente
chocados pelo crime, o regicídio não interessava a menos que fosse
acompanhado pelo triunfar da revolução. Temiam a reacção do povo rural
mais conservador, e estavam cientes do desagrado da Inglaterra para com
qualquer atentado à pessoa física do rei. No entanto, não podiam virar
as costas aos seus apoiantes, o povo miúdo da cidade de Lisboa, já
exacerbado pela propaganda republicana no seu ódio ao regime. Condenavam
o acto, mas como se fosse por obrigação enquanto piscavam o olho ao
povo que lhes enchia os comícios e se filiava no partido. Foi isto, mais
o idolatrar dos regicidas e o recurso à violência depois da
Proclamação da República, que fez incidir sobre o partido as suspeitas
posteriores da autoria do crime. Independentemente da questão de
autoria moral, o certo é que, face à fraca reacção, ou mesmo a falta
dela, por parte do regime, os republicanos organizaram-se nos seus
propósitos de o derrubar pela força, o que viriam a conseguir pela
intentona seguinte, a de 5 de outubro de 1910.
É de notar que por esta altura, e não tendo nem voltado ao expediente
da ditadura, nem evitado as suas costumeiras divisões, os políticos
monárquicos já haviam percebido o seu erro: como consequência deste
último golpe, o governo deu ao rei para assinar um decreto de suspensão
de garantias, para poder lidar firmemente com os agitadores.
Infelizmente para a monarquia, essa acção foi invalidada pela vitória
republicana no golpe. Embora geralmente mal vista devido às associações
negativas com o termo ‘ditadura’,
o governo de João Franco, ou um outro do género, apresenta-se em
retrospectiva como a única solução prática para a situação que tentou
solucionar: basta lembrar que a Primeira República
mostrou-se ainda mais ingovernável, e as únicas acções reformistas
efectivamente levadas a cabo pelo novo regime tiveram lugar durante a
vigência do Governo Provisório, que governou, efectivamente, em ditadura.
Os Responsáveis
Dos factos conhecidos não se considera geralmente o assassínio do rei
como a execução de qualquer decisão vinda dos republicanos, dos maçons e
da dissidência progressista, enquanto grupos. O que não quer dizer que
os mesmos grupos não tenham a sua quota parte de responsabilidade
neste crime. Admitiram como hipótese eventual esta consequência e não
se importaram que esta se concretizasse. Isto porque se os regicidas
actuaram por sua própria iniciativa, apenas se encontraram nessa posição
pela iniciativa daqueles que os mobilizaram e armaram para outros
fins. Certo é que os dois abatidos no local não eram nem os únicos aí
presentes, nem os únicos implicados, como se fez crer na altura. Estudos
recentes vieram trazer luz sobre os responsáveis e a sua motivação,
embora muito ainda esteja envolto em dúvida. Quatro autores são a base
principal sobre os factos que se apuraram: Raul Brandão, António de Albuquerque, Aquilino Ribeiro
e José Maria Nunes. Destes, os dois primeiros não estavam envolvidos
no atentado, tendo recolhido depoimentos de terceiros. Raul Brandão
falou com várias pessoas próximas à trama, e extraiu do líder dos
dissidentes, José Maria Alpoim, a confissão: “Só há duas pessoas em
Portugal que sabem tudo, eu e outra(...) Só eu e outro sabemos em que
casa foi a reunião, quem a presidiu e quem trocou ao Buíça o revólver
pela carabina.” António da Albuquerque, que estava exilado em Espanha
após a publicação do seu romance difamatório para a família real "O
Marquês da Bacalhoa", recebeu o testemunho de Fabrício de Lemos, um dos
regicidas presentes no Terreiro do Paço, e transcreveu-o no seu livro
"A execução do Rei Carlos". Aquilino Ribeiro, embora não tenha
participado directamente, esteve envolvido e conhecia o plano e os
assassinos, como deixou testemunho na sua obra "Um escritor
confessa-se." José Maria Nunes era também um dos regicidas e deixou o
seu testemunho, tendencialmente auto elogioso mas no geral credível, no
escrito: "E para quê?"
Destes quatro testemunhos, só Aquilino é que refere o plano de emboscar
a família real como tendo sido adoptado na ocasião, derivado do plano
de assassinar João Franco, e tomado no local. Do testemunho dos outros
pode-se presumir que o plano teve lugar algures em fins de 1907. Nesta
altura, José Maria Alpoim associa-se à Carbonária o que leva,
consecutiva e complementarmente, a um plano de aquisição de armas, o
plano para um levantamento revolucionário, um plano para assassinar o
primeiro ministro e outro para assassinar o Rei.
Estes planos, segundo o testemunho de José Maria Nunes, teria sido
abordado pela primeira vez em Paris, no Hotel Brébant, no Boulevar
Poissóniere, entre 2 políticos portugueses e alguns revolucionários
franceses. O regicida não nomeia esses políticos, nem nunca se foi capaz
de identificá-los, mas os revolucionários franceses provavelmente
pertenceriam ao movimento anarquista internacional, dado que o
embaixador português em Paris chegou a avisar que se preparava um plano
contra a família real portuguesa vindo desses sectores.
Os Dissidentes foram os principais financiadores, tendo a Carbonária
fornecido os homens. Sabe-se que as armas usadas no regicídio foram
levantadas do armeiro Gonçalo Heitor Freire (republicano e maçon) pelo
Visconde da Ribeira Brava, um dos principais membros dos dissidentes.
Aquando do fracasso da intentona do Elevador da Biblioteca,
estas armas, guardadas nos Armazéns Leal, foram com sucesso
transportadas para casa do dito visconde, onde ficaram escondidas. No
rescaldo do fracasso e reacção do governo, sabe-se que um grupo de 18
homens se reuniu num velho casarão de Xabregas, dia 30 ou 31 (os
testemunhos são contraditórios quanto à data precisa) onde se decidiu
pelo assassinato da família real.
Pelo depoimento dos dois já citados regicidas sabemos a identidade de 8
dos 18 membros. Destes, todos os 8 ou apenas 5 constituíam o primeiro
grupo, posicionado no Terreiro do Paço: Alfredo Costa, Manuel Buíça,
José Maria Nunes, Fabrício de Lemos, Ximenes, Joaquim Monteiro, Adelino
Marques e Domingos Ribeiro. O segundo grupo tomaria posição em Santos e
o terceiro em Alcântara, cobrindo assim todo o caminho até ao Paço das
Necessidades. Os atacantes não esperavam sobreviver ao atentado:
Manuel Buíça já havia feito o seu testamento e Alfredo Costa fez
questão de pagar uma dívida a um amigo. Mesmo assim, a maior parte do
primeiro grupo conseguiu fugir e esconder-se na multidão, e os outros
grupos não tiveram qualquer intervenção.
Pelo conjunto dos relatos pode-se concluir que o plano para matar o rei
já existia previamente, não de forma independente, mas como parte do
plano geral da revolta. No entanto, existe um factor curioso, provocado
pelo descarrilamento da carruagem real ocorrido durante a viagem para
Lisboa, referido acima. No dia do atentado, pouco depois das 4 da tarde,
a 300 km da capital, em Pínzio, perto da Guarda,
dois criados de José Maria Alpoim, regressando de carro depois de
terem transportado o seu patrão para e exílio em Salamanca, ficam sem
gasolina e são forçados a parar. Numa taberna local, e perante várias
testemunhas, afirmam que aquela hora já não havia rei em Portugal, pois
já tinha sido morto. Como poderiam saber? Tal seria verdade se o
comboio não tivesse descarrilado. Até que ponto estava o plano já
estruturado antes do golpe do elevador como plano de recurso e até que
ponto estava José Maria Alpoim envolvido nisso? Estas questões
permanecem sem resposta. Embora os dois regicidas caídos tenham ficado
com as maiores responsabilidades na altura, o envolvimento dos
dissidentes não ficou esquecido. Mal grado a sua auto-promoção depois
da implantação da República, não se conseguiram livrar do efeito
negativo que a suspeita de envolvimento no regicídio lhes transmitiu, e
que se nota pela alcunha de Buíssidentes com que foram
apodados. José Maria Alpoim e o visconde da Ribeira Brava não
conseguiram singrar no novo regime. O primeiro nunca passou de adjunto
do procurador e o ex-visconde foi governador civil de Lisboa mas acabou
vítima da "leva da morte" de outubro de 1918.
in Wikipédia
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