Barragem de Ribeiradio vai alagar vestígios “excepcionais” do Paleolítico
A importância científica dos achados é atestada por arqueólogos
Ex-presidente do Instituto Português de Arqueologia e outro arqueólogo recomendam a escavação integral dos achados antes da entrada em funcionamento da barragem. Mas a EDP diz que é "humanamente impossível" evitar o alagamento quando começar a chover.
A barragem de Ribeiradio-Ermida, em Sever do Vouga, vai alagar vestígios
“excepcionais” da ocupação humana no Paleolítico. A EDP, dona da obra,
diz que vai preservar o que for possível antes do enchimento da
albufeira, previsto para o final deste ano, mas dois arqueólogos
especialistas em pré-história - envolvidos na investigação que levou à
suspensão da barragem de Foz Côa, na década de 1990 - defendem um estudo
mais aprofundado do local antes da submersão.
Em causa estão duas jazidas identificadas nas
margens dos rios Vouga e Teixeira, que ficarão submersas com a barragem
cuja construção, em curso desde o final de 2009, está orçada em 170
milhões de euros.
Uma das jazidas fica no sítio do Rôdo e
apresenta vestígios de estruturas de combustão, alguns “fundos de
cabana” e estruturas associadas a artefactos de pedra característicos do
Paleolítico Superior (entre 40 mil a 10 mil anos a.C). Na jazida do Vau
foram também identificadas estruturas em pedra com sinais de combustão
associadas a artefactos do Mesolítico (10 mil a 5000 anos aC).
Segundo
a Direcção-Geral de Património Cultural (DGPC), que está a acompanhar o
processo, “a originalidade dos sítios reside no facto de, até ao
momento, ser desconhecido este tipo de ocupação na área territorial em
causa”.
A importância científica dos achados é atestada pelos
arqueólogos João Zilhão, ex-presidente do Instituto Português de
Arqueologia e investigador das universidades de Lisboa e de Bristol, e
Thierry Jean Aubry, do Parque Arqueológico do Vale do Côa. Ambos
visitaram as escavações em Junho e elaboraram um parecer, no qual
sublinham que se trata de “um caso excepcional no Paleolítico Superior
ibérico, e único em todo o Noroeste de Portugal”.
A subida do
nível da água no leito do Vouga para a cota de enchimento da barragem de
Ribeiradio, até aos 110 metros, vai implicar a “‘destruição’ [dos
vestígios] por perda de acessibilidade para a investigação científica”,
alertam os autores do parecer, sugerindo um “programa mínimo de
salvamento pelo registo” antes da submersão.
Recomendam,
nomeadamente, a escavação integral das duas jazidas (cada uma com 3.000 a
5.000 metros quadrados), o estudo geológico e a datação radiocarbónica
das diferentes estruturas, e ainda a prospecção de outras ocorrências do
mesmo género naquela zona. Os especialistas reconhecem que estas
operações poderão “implicar o adiamento da entrada em funcionamento da
barragem por algumas semanas ou meses”, mas sublinham que “é imperativo,
contudo, que os estudos de campo referentes a estas descobertas
excepcionais sejam aprofundados”.
Zilhão e Aubry vão mais longe,
admitindo a possibilidade de preservar os vestígios no local: “As
condições geomorfológicas e os processos sedimentares são muito
favoráveis à preservação da organização espacial dos vestígios das
ocupações humanas antigas”.
Em resposta ao PÚBLICO, por escrito, a
EDP garante que está a “colaborar na obtenção do máximo de informação e
recolha de vestígios, no limite dos prazos possíveis”. Contudo, a
empresa lembra que “os achados encontram-se a montante da barragem, pelo
que é humanamente impossível evitar o seu alagamento quando os caudais
do rio [Vouga] atingirem os níveis que se conheceram nos últimos
invernos”. As obras não vão ser suspensas.
A eléctrica acrescenta
que vai tomar medidas para “preservar todos os achados, antes que a
albufeira encha na época normal das chuvas”: além do reforço das equipas
de arqueólogos no terreno com especialistas em Pré-história, a
realização de estudos complementares (segundo a DGPC, este estudos são
os mesmos que Zilhão e Aubry recomendam no parecer), e ainda o
financiamento de duas bolsas de investigação e da publicação dos
resultados.
A DGPC garante que as medidas tomadas pelo promotor
estão “em conformidade” com a Declaração de Impacto Ambiental (DIA). No
entanto, ressalva que os vestígios que permaneçam no local terão de ser
“devidamente protegidos in situ de modo a permitir a menor
afectação aquando da submersão”. Acrescenta que está previsto um “plano
de recuperação final” daquelas zonas, a aplicar na fase de desactivação
da barragem, que deve incluir uma investigação liderada por
especialistas em Pré-história antiga, para "dar continuidade ao estudo
dos contextos que ficaram imersos”.
Os achados terão apanhado a
EDP de surpresa. No Estudo de Impacte Ambiental (EIA) do projecto lê-se
que, durante as prospecções, “não foram detectados quaisquer vestígios
desta natureza [arqueológica]” na área directamente afectada pela futura
albufeira. Mas a DIA ressalva que, caso sejam encontrados vestígios
arqueológicos, “as obras devem ser suspensas nesse local” e as áreas em
causa “têm que ser integralmente escavadas”. A DIA estipula ainda que as
estruturas arqueológicas “devem, tanto quanto possível e em função do
seu valor patrimonial, ser conservados in situ, de tal forma que não se degrade o seu estado de conservação”.
Pelo menos numa primeira fase, as intervenções arqueológicas
estiveram a cargo das empresas Era Arqueologia (no Vau) e Arqueologia e
Património (no Rôdo). No entanto, o PÚBLICO sabe que apenas a segunda se
mantém no terreno. Questionada sobre qual a empresa a que foi entregue a
investigação no Rôdo e se o reforço das equipas vai permitir a
escavação integral das duas jazidas antes do enchimento da albufeira
(como recomendado pelos autores do parecer), a EDP não respondeu.
O
aproveitamento hidroeléctrico de Ribeiradio-Ermida inclui duas
barragens e duas centrais de produção de energia. O projecto é uma
aspiração antiga das populações de Sever do Vouga e de Oliveira de
Frades. Quando foi lançada a primeira pedra, em Novembro de 2009, o
presidente da EDP, António Mexia, garantiu que tudo estaria a funcionar
em Abril de 2013, mas tal não deve acontecer antes do final deste ano.
Autarcas criticam “lacunas” no cumprimento do EIA
O presidente da Câmara de Sever do Vouga, António Coutinho, pouco sabe ainda sobre os achados. “Se houver elementos que possam ser recolhidos, queremos que sejam cedidos ao museu que estamos a construir no concelho”, afirma. Para já, as preocupações dos autarcas da zona são outras. Num relatório de Junho, a comissão criada pela Assembleia Municipal para acompanhar o projecto enumera “algumas lacunas” no cumprimento das medidas de minimização previstas no EIA: atrasos na reposição de caminhos e de praias fluviais danificados durante as obras, e a incorrecta trasladação dos monumentos às “Alminhas da Foz do Rio Lordelo”.
O presidente da Junta de Freguesia de Couto de Esteves,
Sérgio Soares, critica também os “preços vergonhosos” pagos pelo
promotor aos proprietários dos terrenos expropriados. Um deles, um casal
com cerca de 60 anos, foi indemnizado em 80 mil euros para abandonar
até 15 de Agosto a casa onde morava no Rôdo (que vai ficar submersa) e
dois terrenos de pinhal. “Nos dias de hoje, este valor não chega para
fazer uma habitação”, nota Sérgio Soares. Até há poucas semanas, o casal
não tinha alternativa habitacional devido aos atrasos na construção de
uma nova moradia.
Confrontada com o problema numa reunião da
comissão de acompanhamento em maio, a EDP descartou responsabilidades. O
casal vai morar temporariamente com uma vizinha.
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