O Carlos já nos revelou que «Sagan e Feynman que me perdoem (ambos já falecidos, tal como Gould, de cancro), Hawking, Watson e Reeves (muito vivos os três) que não fiquem ofendidos, mas Stephen Jay Gould é, de todos eles, quem melhor prosa de divulgação escreveu». A mestria do grande comunicador em transformar qualquer assunto banal numa «lição» de ciência, que permite a quem o escute ou leia integrá-la nas suas vidas, pode ser apreciada na série de entrevistas que concedeu em 1984 (disponível no Youtube).
A actualidade e relevância do pensamento de Gould, que esta série com quasi um quarto de século demonstra claramente, foram ainda evidenciadas recentemente na Science News. Patrick Barry inicia a discussão do artigo «Historical contingency and the evolution of a key innovation in an experimental population of Escherichia coli», publicado online há uma semana nos «Proceedings of the National Academy of Sciences», afirmando que «Se Stephen Jay Gould fosse vivo, estaria a sorrir. Talvez até um sorriso de regozijo (gloating no original) .
O artigo do PNAS sugere, embora não de forma conclusiva, que Gould tinha razão no aceso debate que manteve, nomeadamente com Simon Conway Morris, em relação à sua convicção de que a vida da Terra evoluiu como evoluiu devido a contingências circunstanciais e de que se estes acasos tivessem sido outros a evolução teria sido diferente.
Este é o tema do livro «Vida maravilhosa — O acaso na evolução e a natureza da história», em que Gould compara a evolução a uma fita de vídeo que, depois de visualizada e rebobinada, quando posta a funcionar de novo teria um final diferente: «Existiriam tantas contingências, que não ocorreram da primeira vez, que o curso da história seria outro. Isso é verdade também para a história e a cultura humana; e na evolução é muito frequente».
Embora Gould não seja o «pai» do conceito de contingência histórica do processo evolucionário, certamente foi um de seus mais importantes entusiastas e divulgadores. Um dos exemplos que utilizou para explicar a sua perspectiva, o desaparecimento dos dinossáurios há cerca de 65 milhões de anos, entre o Cretáceo e o Terciário (transição K-T), é desenvolvido com muita clareza no último livro que publicou ainda em vida.
«Dinossáurios e mamíferos partilharam a Terra por 130 milhões de anos, o dobro do período de sucesso dos mamíferos que se seguiu e que levou à emergência do Homo sapiens entre as outras 4.000 outras espécies vivas da nossa classe Mammalia. [...] podemos conjecturar que, na ausência deste acidente cósmico, os dinossáurios ainda dominariam os habitats de grandes animais terrestres e os mamíferos ainda seriam criaturas das dimensões de ratos, vivendo nos interstícios ecológicos do mundo reptiliano. Neste episódio, mais vitalmente pessoal que qualquer outro, deveríamos literalmente agradecer à nossa estrela da sorte [...] que na vigência das novas regras do impacto K-T certas marcas da nossa incompetência ancestral – persistência de um pequeno tamanho no mundo dos dinossáurios, por exemplo – subitamente se tenham transformado em vantagens cruciais e fortuitas enquanto a fonte prévia de triunfo para os dinossauros [o seu grande tamanho] levou à sua tragédia.
Demócrito, um dos «pais» do atomismo juntamente com Epicuro, o filósofo que inspirou o «De Rerum Natura» de Lucrécio, dizia que «tudo no universo é fruto do acaso e da necessidade». Este artigo no PNAS parece indicar que as memórias de Gould e de Demócrito se regozijariam com a notícia.
quinta-feira, junho 12, 2008
Stephen Jay Gould: uma lição de vida
Com a devida vénia publicamos o seguinte post, da Doutora Palmira F. da Silva, do Blog do Público De Rerum Natura:
Postado por Fernando Martins às 09:45
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