Que ligação poderia existir entre fósseis e futebol? Quem fizer esta pergunta para especialistas no estudo de organismos extintos ou para aqueles que entendem do esporte bretão ouvirá a resposta óbvia: nenhuma! No entanto, a história de um dos principais depósitos de fósseis brasileiros tem uma ligação, ainda que tênue, com o futebol. Esse depósito é a Bacia de São José de Itaboraí, localizada no município homônimo, no estado do Rio de Janeiro.
Em um dado momento foi encontrado na região de Itaboraí um tipo de rocha chamado calcário, de grande interesse econômico, por ser matéria prima para a fabricação do cimento, tão importante na construção civil. A partir de 1928, o depósito calcário de Itaboraí foi explorado pela Companhia Nacional de Cimento Portland, que encerrou as suas atividades na região em 1984. E o cimento de Itaboraí foi utilizado, entre outras obras, na construção de um estádio de futebol. Mas não era qualquer estádio, e sim um bem especial, concebido para ser o maior do mundo: o Maracanã. A construção ganhou projeção internacional: são poucos os turistas que chegam ao Rio e não desejam ao menos passar em frente ao estádio Mário Filho (nome oficial do Maracanã).
Naturalmente, não só o Maracanã foi construído com o cimento de Itaboraí. A ponte Rio-Niterói é outra obra de engenharia civil que se valeu do cimento produzido a partir desse depósito. Alias, graças a ele foi instalada na região a segunda fábrica de cimento no Brasil. Mas como é que os fósseis entram nessa história?
A Bacia Sedimentar de São José de Itaboraí é uma das menores do Brasil, com 1.400 metros de comprimento (orientação nordeste-sudoeste) e largura máxima de apenas 500 metros. Ela se formou há pelo menos 60 milhões de anos, quando, devido a forças tectônicas que agem no interior da Terra, um lago raso instalou-se na região. Nas margens desse lago, vivia uma variada fauna, particularmente de mamíferos, que originou um dos principais depósitos fósseis do país.
Do ponto de vista geológico, as rochas sedimentares que formam a Bacia de São José de Itaboraí se dividem em três seqüências distintas. A primeira, que forma o assoalho da bacia, é constituída por camadas com diversos tipos de calcário: o tavertino (reconhecido por um bandeamento típico), um mais maciço e cinzento e um calcário oolítico-pisolítico de aspecto bem característico. Nessas camadas, são encontrados principalmente gastrópodes (moluscos), vegetais e alguns mamíferos.
Logo em seguida houve uma fase na bacia em que esses calcários foram parcialmente dissolvidos, criando fendas e cavernas (topografia cárstica). Essas fendas foram preenchidas com a ocorrência de enxurradas na região há 60 milhões de anos, formando as rochas da segunda seqüência sedimentar. Sua composição é semelhante ao calcário cinzento que forma o assoalho da bacia, sendo que suas rochas são menos consolidadas.
Essas fendas forneceram a maior parte dos fósseis de Itaboraí. Entre os mais abundantes estão os gastrópodes (moluscos), particularmente espécies terrestres que viviam nos arredores e margens do antigo lago. Também há fósseis de plantes, anfíbios, lagartos, crocodilomorfos e aves. Até mesmo uma vértebra de cecília (Caeciliidae) – um anfíbio semelhante a uma minhoca – foi encontrada nesse depósito. Mas o maior destaque cabe aos mamíferos fósseis.
O grupo mais diversificado é o dos marsupiais, que reúne as únicas formas de mamíferos carnívoros encontrados nesse depósito. São inúmeras espécies como o Protodidelphis e o Patene simpsoni. O grupo mais comum, no entanto, é o dos ungulados. Entre eles está o Paulacoutoia protocenica, um representante do grupo Condylarthra e o Colbertia magellanica, do grupo Notoungulata. Um dos mais famosos – e maiores – é o Carodnia vieirai (Xenungulata), do qual esta sendo confeccionada uma réplica, sob a coordenação da professora Lílian Bergqvist, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Também foram encontrados no calcário de Itaboraí o mais antigo representante dos tatus (Xenarthra) e diversos outros grupos de mamíferos. O conjunto de fósseis ali encontrados possibilitou a datação desse depósito no Paleoceno, que chegou a receber a designação própria – Itaboraiense. Assim, sabemos que essa fauna viveu alguns milhões de anos depois da extinção dos dinossauros não-avianos.
Por fim, há ainda a terceira seqüência de rochas que recobriram os depósitos calcários de São José do Itaboraí. A idade dessas rochas – entre 12 e 15 mil anos atrás – se inscreve no Pleistoceno. Apesar de não haver consenso entre os pesquisadores, essa datação é baseada em rochas parecidas encontradas a 100 metros da parte sul da bacia, onde foram coletados restos de mamíferos da megafauna, como mastodontes e preguiças-gigantes.
Desde 1984, a água subterrânea e a chuva foram preenchendo a depressão deixada pela atividade da mineração. Como resultado, temos hoje na região um novo lago que, infelizmente, impede trabalhos de geologia e paleontologia na área. Talvez atividades de mergulho permitam coletar novos fósseis no futuro – trata-se de um projeto complicado, mas não totalmente impossível.
Devido a esse importante conjunto de fósseis, uma lei municipal instituiu em 12 de dezembro de 1995 o Parque Paleontológico de São José de Itaboraí. Pouco ativo desde a sua criação, o parque tem recebido nos últimos anos grande suporte da comunidade de paleontólogos fluminenses e um importante auxílio da prefeitura de Itaboraí e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Uma visita à região está sendo planejada, por ocasião do Dia do Paleontólogo (veja as Paleocurtas abaixo).
De qualquer forma, a Bacia de São José de Itaboraí forneceu centenas de restos de organismos extintos, que se encontram distribuídos em várias instituições, muitos dos quais ainda estão sendo estudados. A criação de um parque paleontológico na região de Itaboraí seria muito benéfica para a população local, além de representar uma chance de preservar o que sobrou desse importante depósito de fósseis do país. Esperemos que os esforços para transformar esse parque se tornem realidade – isso seria um verdadeiro "gol de placa"!
Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
03/03/2006
NOTA: Texto publicado no jornal on-line Ciência Hoje (do Brasil).