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sábado, abril 20, 2024

Notícia sobre quirópteros madeirenses...

Pequenos, peludos e voadores: os morcegos caçam pragas agrícolas na Madeira

 

Morcego-arborícola-da-madeira, uma subespécie endémica da ilha Ricardo Rocha

 

Estudo de cientistas portugueses conclui que 40% da dieta das três espécies destes mamíferos da ilha da Madeira é composta por insetos prejudiciais para a agricultura.

Na ilha da Madeira, há três espécies de morcegos que se alimentam de insetos. E uma equipa de cientistas portugueses investigou a dieta destes pequenos mamíferos voadores, recorrendo a uma avançada técnica genética, e concluiu que pelo menos 40% dos insetos que fazem parte da sua dieta são pragas agrícolas ou florestais, ou até vetores para a transmissão de doenças aos seres humanos.

A maior componente da dieta das três espécies de morcegos nativas da Madeira é composta por borboletas noturnas. Mas, embora a contribuição dos morcegos não seja muito conhecida, dão uma enorme ajuda aos agricultores, e ao controlo de outros insetos prejudiciais para a saúde humana. “Não estávamos à espera de que uma percentagem tão grande de presas correspondesse a pragas agrícolas ou florestais, prováveis, ou confirmadas”, disse Angelina Gonçalves, da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e do laboratório associado CIBIO - Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, citada num comunicado de imprensa.

“As presas dos morcegos alimentam-se de um vasto leque de espécies, incluindo muitas de elevado interesse económico, como a bananeira, a estrelícia, e a cana-de-açúcar”, explicou ao Azul Ricardo Rocha, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, coordenador do trabalho publicado na semana passada na revista científica Journal of Mammology. Uma delas é a traça-da-bananeira (Opogona sacchari), que não só afecta as plantações de bananeiras, como também várias espécies ornamentais, como a famosa flor da Madeira, a estrelícia.

Mas quem são os morcegos madeirenses? “O morcego-da-madeira (Pipistrellus maderensis) habita apenas na Macaronésia, nos arquipélagos da Madeira, Canárias e provavelmente Açores”, explicou ao Azul Ricardo Rocha, “explorador” da National Geographic.

O morcego-arborícola-da-madeira (Nyctalus leisleri verrucosus) é uma subespécie endémica da Madeira. “Isto quer dizer que, apesar de a espécie ter uma distribuição mais ampla, as populações na Madeira são suficientemente diferentes para terem uma classificação própria”, indicou Ricardo Rocha.

 

Morcego-orelhudo-cinzento: existe em toda a Europa ocidental, mas é o menos abundante na Madeira
 

Por fim, o morcego-orelhudo-cinzento (Plecotus austriacus), que tem uma distribuição muito mais alargada, pois existe em grande parte da Europa Ocidental, é o menos abundante na Madeira.

 

Código de barras genético

 Como é que os cientistas analisaram a dieta destes voadores noturnos? Começaram por ter de apanhar um número significativo de morcegos das três espécies, usando redes colocadas em vários locais no Parque Ecológico do Funchal. “Foram muitas noites de trabalho árduo, mas com muito esforço conseguimos capturar mais de cem morcegos, o que nos permitiu examinar as diferenças alimentares entre as várias espécies”, adiantou Angelina Gonçalves, que é a primeira autora do estudo publicado na revista científica Journal of Mammology.

O método tradicional para perceber de que se alimenta um animal é analisar as suas fezes, quer por observação direta, quer ao microscópio, procurando vestígios daquilo de que se alimentou. “Mas como a maior parte dos morcegos caça no ar à noite e mastiga os fragmentos maiores das suas presas, estes métodos não são particularmente eficazes para analisar a sua dieta”, escrevem os investigadores no artigo.

Decidiram, portanto, usar uma técnica desenvolvida nos primeiros anos do século XXI, o código de barras de ADN. “Esta técnica tem vindo a ser cada vez mais usada em estudos de dieta”, comentou Ricardo Rocha, que dá uma explicação simples do que se trata: “De forma muito resumida, identificam-se segmentos de ADN que permitem diagnosticar determinados grupos taxonómicos – atuam como uma espécie de código de barras. Com isso, conseguimos perceber que presas foram consumidas pelos morcegos com uma resolução muito maior do que conseguíamos no passado.

“Este estudo foi um dos primeiros a usar este método do código de barras genético para avaliar a dieta de morcegos que vivem em ilhas, salientam os autores do artigo. Assim, avança em muito o conhecimento relativo à ecologia trófica [de alimentação] e serviços de supressão de pragas prestados por estes mamíferos ainda mal conhecidos”, escrevem no artigo científico.

 

Discretos e pouco estudados
Porque são os morcegos mal conhecidos? Responde Ricardo Rocha: “No geral, os morcegos são pouco estudados. Tendem a ser espécies pequenas, noturnas, e bastante discretas.” No caso de espécies insulares, que vivem em ilhas, essa falta de estudos é particularmente aguda, salienta.

“Este não é o padrão exclusivo dos morcegos. É um padrão geral dos vertebrados em ilhas. Salvo raras exceções, como por exemplo os tentilhões das Galápagos [aves], ou algumas aves marinhas, as espécies insulares tendem a ser particularmente pouco estudadas, se compararmos com as as espécies continentais”, explica Ricardo Rocha.

Os demais mamíferos da Madeira não são nativos. Alguns, como os gatos, são predadores de morcegos e outras espécies nativas, o que pode afetar eventuais serviços de ecossistema – como o potencial controlo de pragas, associado ao consumo de insetos nefastos à agricultura

Ricardo Rocha


 Os morcegos que comem insetos, tal como os que ocorrem na Madeira, são de captura particularmente difícil, salienta o cientista português. “A sua ecolocalização é bastante desenvolvida, pelo que são muito bons a evitar as redes que usamos para os estudar”, justifica.

A equipa esforçou-se, por isso, para obter cem amostras de fezes dos morcegos capturados, que submeteu depois à técnica do código de barras de ADN. Os resultados revelaram uma variedade de 110 presas, artrópodes, na dieta dos morcegos madeirenses, 40% dos quais são pragas agrícolas como a traça-da-bananeira, ou até causadoras de doença nos seres humanos, como a mosca Psychoda albipennis, um parasita que causa miíase, uma doença produzida pela infestação de larvas de moscas na pele ou outros tecidos.

“No Porto Santo existe apenas uma espécie de morcego (Pipistrellus maderensis), mas também aí os morcegos se alimentam de pragas agrícolas”, salientou Eva Nóbrega, co-autora do artigo e estudante de doutoramento do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, citada no comunicado de imprensa. “Além disso, num estudo que publicámos em 2023, detetámos que no Porto Santo [o morcego] consome insetos vectores de doenças, incluindo mosquitos Culex.” 

Muitas das espécies de insetos com efeitos nefastos na agricultura da Madeira não são nativas da ilha. “Foram introduzidas, relativamente recentemente, por mão humana”, sublinha Ricardo Rocha. Mas muitos dos insetos consumidos pelos morcegos na Madeira são nativos da ilha. “Algumas são mesmo endémicas, o que quer dizer que ocorrem apenas na região. Já devem fazer parte do menu destes mamíferos noturnos há muitos milhares, ou mesmo milhões de anos (bem antes da chegada dos humanos!)”, adianta o cientista.

Morcego-da-madeira, uma espécie que vive apenas nas ilhas da Macaronésia

 

Colonizadores de ilhas

Os morcegos são, na verdade, os únicos mamíferos nativos da ilha da Madeira. “Pela sua capacidade de voar, [os morcegos] tendem a ser bons colonizadores de ilhas oceânicas”, explica Ricardo Rocha. Outros grupos de mamíferos terrestres não têm a capacidade de colonizar ilhas que não tenham estado ligadas ao continente. Exceções raras são, por exemplo, os musaranhos das ilhas de São Tomé e Príncipe, pequenos animais, com cerca de 15 gramas, mas capazes de atacar, matar e devorar animais que têm o dobro do seu tamanho.

“Os demais mamíferos que correm na Madeira não são nativos. Alguns, como os gatos, são predadores de morcegos e outras espécies nativas, o que pode afetar eventuais serviços de ecossistema aos quais estejam associadas espécies nativas – como, por exemplo, o potencial controlo de pragas, associado ao consumo de insetos nefastos à agricultura, que reportamos no estudo agora publicado”, alerta Ricardo Rocha.


in Público