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quarta-feira, março 19, 2025

O poeta Rui Diniz faz hoje 46 anos

 

Ossos de Sépia

 

Restam-nos os Loucos

 

Aproveito o tempo que me concedem
- como sendo um prisioneiro indesejado,
a quem por vezes se entrega uma benesse
quando se porta bem -
e caminho por uma parte velha da Cidade.
Há ainda pequenas lojas,
bastiões em decadência
que nos recordam dos passos à frente
que agora damos para trás.
Há portas sem cor, há um cheiro a dor podre,
um odor a tristeza, a suor sem fruto,
a morte...


...


Quem noutros tempos viveu ilusões de grandeza
e se sentiu grande senhor de si próprio
(mesmo sendo do povo)
- que era desde então possível sê-lo e ser do povo! -
colocou nas suas mãos um presente envenenado
e serão agora espoliados...
de novo.
Mas ninguém vê...


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Ai... a Cidade.
O campo de concentração já sem idade.
A prisão punitiva dos pecados ancestrais,
aplicada no consentimento.
Alguns olham para o matadouro que os espera
e baixam a cabeça.
Alguns vociferam e são loucos,
condenados pelos muitos que são,
no entanto, é moucos!


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...


A tenaz aperta-se cada vez mais,
cada dia mais forte empurrada pelos músculos
dos que por ela são trucidados!
Passam por mim sem qualquer face própria;
há os que caminham cabisbaixos
sem ver fuga do seu fado
e há depois os empinados,
olhando-me do topo dos seus cavalos,
sorrindo já enforcados pelo nó da gravata
que os faz vassalos
e que os mata!
Mas ninguém os acorda...


Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Caminhando por esta parte velha da Cidade,
recordo as minhas palavras
e canto-as na minha mente
para quem as quiser ouvir:
"Entre o Céu e o Inferno
há um espaço indefinido,
uma História recontada
e um sorriso materno
comprimido
contra a Espada"...
Mas ninguém me presta atenção...
 

Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
 

Lê os livros, bebe as palavras
daqueles como eu,
que destroem a ilusão da beleza!
Manténs-te sobrevivente na tristeza
da ausência do nosso Inverno,
que te traria na Primavera
um apogeu!
Escondes-te da verdade...
 

Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...

No fundo tu sabes
que a bota cairá sobre a tua face,
que as correntes cobrirão o teu corpo,
que a pestilência inundará as tuas veias...
porque quando eu te avisei
e te dei a ler os meus versos...
tu riste de mim e fugiste,
ligaste a televisão e adormeceste,
tomaste um analgésico e te perdeste,
mataste mais alguém e morreste...
 

No fundo tu sabes:
Restam-nos os Loucos!
Restam-nos os Loucos...
e no mundo
somos poucos!

 


Rui Diniz

terça-feira, março 19, 2024

O poeta Rui Diniz celebra hoje 45 anos

Ossos de Sépia

 

 

A solidão é a única certeza

 

A solidão é a única certeza.
Escutai: os pássaros gritam
nas azinhagas.
O relógio ausente,
a memória rachada.
Um porto de espera,
O odor vívido de mar.
já nem a tribo é refúgio
e a travessia do deserto
deixou um sabor amargo
na promessa nómada.
As ilhas são só origem
as cidades expulsam
o poeta.
Só a brancura da folha
estendida na mesa
coma sua ânsia de tinta
e o seu desejo de palavras
só essa virtualidade
nos é destino.
«A lâmpada funde-se
entre os dedos,
o silêncio apodrece.
Há flores por toda a parte,
definhando.»
a solidão é-nos destino.
Dela damo-nos conta
quando o encontro se desfaz,
entre gafes,
balbuciamentos.
Respiro, é tarde.
O teu retrato exude
a melancolia
de todas as distâncias.
Suspiro, cismo.
Um corvo crocita
de árvore em árvore.
No passado que se aproxima
terei sido esquecido. 


Rui Diniz