(imagem daqui)
A construção do ser
Em setembro a construção do ser torna-se mas fácil:
o outono, com a sua melancolia, empresta um estranho
perfume de terra ao espírito. As linhas da natureza ficam
tão nítidas como a linha do horizonte; e pode ver-se
para o outro lado, onde as ideias se sobrepõem como
peças de um jogo de cubos. Espreito através deles,
tentando esquecer as letras que serviam para que,
com esses cubos, se formassem palavras: as palavras
simples de um vocabulário infantil. Mas as letras tapam-me
a vista do horizonte, e trazem-me de volta ao puro
jogo do ser, onde nada está decidido. É verdade que podia
atirar tudo abaixo, pensando que o que importa são
essas linhas abstractas que desenham, entre as nuvens e o mar,
uma hipótese de alma. Para isso, seria preciso que eu
esquecesse as palavras que aprendi, e que voltasse à planície
branca da origem. Fogo, água, luz, terra, todas as letras
me obrigam a tê-los em conta, mesmo quando o que eu quero
é outra coisa - a própria qualidade, o essencial, o que
nenhum sentido capta. Então, espero pelo inverno para
me desembaraçar da matéria: a chuva, a neve, as tardes
de nevoeiro, o frio da noite até ao nascer da madrugada,
onde os cubos de luz caem entre ser e não ser.
in Cartografia de Emoções (2001) - Nuno Júdice
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