sábado, setembro 17, 2011

Porque hoje é dia de ouvir Poesia




Fado dos Pobres - José Régio


Aquela antiga beleza
Que vem descendo o passeio
Com seu ar de velha Alteza,
Seu velho folho de cassa
No peitilho de entremeio,
Diante duma vidraça,
Das tais que ofuscam a gente,
Pára a sonhar longamente...,
E ao voltar-se, de repente,
Estende a mão a quem passa!


Aquela rapariguinha,
Com olhos de malfadada,
Que ao declinar da tardinha
Vai, ao sabor do primeiro,
De canto em beco levada,
Ganha, assim, algum dinheiro
De que faz entrega à mãe,
Que ainda o ganha, também,
Se lhe aparece com quem,
No seu giro aventureiro...


Aquela velha do gato
Põe um quico na cabeça,
Roja um cambado sapato
De fivela desatada
No qual, às vezes, tropeça,
E em seda roxa estafada,
A saia em que anda metida
A sua carne sem vida
Nem parece andar vestida,
Parece ir dependurada...


Aqueles velhos dementes,
Qualquer um octogenário,
Que ao fim da tarde são rentes,
Se é que o não são todo o dia,
Nalgum jardim solitário,
Vivem tão sem companhia
Que não têm na pensão
Em cujos baixos estão
Nem quem lhes pregue um botão
Nem quem lhes dê seu bom-dia...


Aquele frágil menino
Que guia o cego que arranca
Do seu roufenho violino
Ganidos do triste fado
Tem um rubor na tez branca,
Se atira um verso guinchado,
Que diz que o pobre do cego
Vai perder esse aconchego,
Mai-la rabeca esse emprego,
Mai-lo fado um seu fadado...


Aquele velho que ostenta
Madeixas sobre as orelhas
Ou sobre a gola sebenta
E a unha grande saída
Das botas podres de velhas
— Foi honrado toda a vida,
Tem a mulher entrevada,
Tem seis filhos, não tem nada,
Trabalhou a vida honrada,
Pede esmola à despedida...


Aqueles olhos sem fundo
Que ardem, febris, na utopia
De sorver a vida, o mundo,
No seu sôfrego clarão,
Passam três quartos do dia
Sonhando, brilhando em vão
Sobre uma triste costura,
Numa triste loja escura
Duma rua sem ventura
Com casas de perdição...


Aquele estranho maneta
Que aos muros passa cosido
Com seu sorriso pateta,
Seu coco mais seus fundilhos,
Na guerra foi distinguido,
Perdeu mulher, perdeu filhos,
Vai para a taberna andando
Em que, bebendo e fumando,
Vegeta cantarolando
Velhos torpes estribilhos...


Aquela mulher cansada
Que esfrega casas a dias
E é feia, má, desleixada,
Sempre tem quem goste dela!
Que horas mortas, noites frias,
Quem quer lhe bate à janela...,
E assim é que um filho dorme
No seu bambo seio informe
E outro no seu ventre enorme,
Já tem quem sabe que estrela...


Aquele pífio janota
Da bota de polimento
Põe no cabelo e na bota
Pomadas em que gastou
Dinheiro do seu sustento
Do jantar que não jantou.
Só assim chique se atrela
À esquina dessa viela,
Fitando aquela janela
A que ninguém se assomou...


Aquela esguia figura
Que sobe e desce a calçada,
Roça os homens, e murmura
Coisas que ninguém atende,
Quando entra, de madrugada,
No quartinho em que se vende,
Nem se atreve a olhar o espelho
De onde a espreita um rosto velho
Sob o fingido vermelho
Da boca em lanho que ofende...


Aquele pintor doente,
Que dizem ter muito jeito,
Vive num bar indecente
Em que o seu sonho requinta
E aumenta o seu mal de peito.
Não tem pincéis, não tem tinta,
E, se parece que reza
Olhando o mármore da mesa,
É a pintar, com certeza,
Os quadros que nunca pinta...


E aquele senhor poeta
Que anda bêbado na rua,
Tem filáucias de profeta,
Traz barbas de vagabundo,
Lança apóstrofes à lua
E dorme num vão imundo,
Contenta-se com tão pouco
Porque diz, bêbado e rouco,
Que os seus poemas de louco
Poderão salvar o mundo!

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