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segunda-feira, abril 08, 2024

Porque é preciso recordar os poetas...

 


Notícias do Bloqueio

Aproveito a tua neutralidade,

o teu rosto oval, a tua beleza clara,

para enviar notícias do bloqueio

aos que no continente esperam ansiosos.



Tu lhes dirás do coração o que sofremos

nos dias que embranquecem os cabelos...

tu lhes dirás a comoção e as palavras

que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.



Tu lhes dirás o nosso ódio construído,

sustentando a defesa à nossa volta

- único acolchoado para a noite

florescida de fome e de tristezas.



Tua neutralidade passará

por sobre a barreira alfandegária

e a tua mala levará fotografias,

um mapa, duas cartas, uma lágrima...



Dirás como trabalhamos em silêncio,

como comemos silêncio, bebemos

silêncio, nadamos e morremos

feridos de silêncio duro e violento.



Vai pois e noticia com um archote

aos que encontrares de fora das muralhas

o mundo em que nos vemos, poesia

massacrada e medos à ilharga.



Vai pois e conta nos jornais diários

ou escreve com ácido nas paredes

o que viste, o que sabes, o que eu disse

entre dois bombardeamentos já esperados.



Mas diz-lhes que se mantém indevassável

o segredo das torres que nos erguem,

e suspensa delas uma flor em lume

grita o seu nome incandescente e puro.



Diz-lhes que se resiste na cidade

desfigurada por feridas de granadas

e enquanto a água e os víveres escasseiam

aumenta a raiva

..........................e a esperança reproduz-se


 
Egito Gonçalves

O poeta Egito Gonçalves nasceu há 104 anos...


José Egito de Oliveira Gonçalves
(Matosinhos, 8 de abril de 1920 - Porto, 29 de janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como atividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa atividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela seleção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano. Faleceu em 2001, e o seu último livro, Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo, foi editado cinco anos depois.
 
 
 

Tudo Vai Bem, Amor!...
   

Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!
Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,
ninguém descarna o sonho ou a esperança,
não há fantasmas de espingarda ao ombro,
ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...
Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,
ninguém encobre estrelas com areia,
não cortam com navalhas os seios das mulheres,
não se incendeiam
ghetos com corpos de crianças:
é tudo útil, simples, como um campo de trigo
- a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.
Os poetas podem passear nas ruas; a paz
não é uma aranha sobre terra árida.
O sono não se povoa de estátuas de ameaça,
o amor não se faz de coração crispado:
o leito do amor é a simples terra nua.


in O Vagabundo Decepado - Egito Gonçalves

segunda-feira, janeiro 29, 2024

Saudades da poesia de Egito Gonçalves...

 

 
Notícias do Bloqueio
  
  
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
 ..........................e a esperança reproduz-se



   
Egito Gonçalves

Egito Gonçalves partiu há vinte e três anos...

   
José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinhos, 8 de abril de 1920 - Porto, 29 de janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano. Faleceu em 2001, e o seu último livro, Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo, foi editado cinco anos depois.
 

 

 

A Aventura é Ficar

Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida…
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra…
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo…
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à sua teia.
 

   

   

in A Evasão Possível - Egito Gonçalves

 

sábado, abril 08, 2023

Egito Gonçalves nasceu há 103 anos...


José Egito de Oliveira Gonçalves
(Matosinhos, 8 de abril de 1920 - Porto, 29 de janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como atividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa atividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela seleção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano. Faleceu em 2001, e o seu último livro, Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo, foi editado cinco anos depois.
 
 
 

Tudo Vai Bem, Amor!...
   

Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!
Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,
ninguém descarna o sonho ou a esperança,
não há fantasmas de espingarda ao ombro,
ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...
Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,
ninguém encobre estrelas com areia,
não cortam com navalhas os seios das mulheres,
não se incendeiam
ghetos com corpos de crianças:
é tudo útil, simples, como um campo de trigo
- a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.
Os poetas podem passear nas ruas; a paz
não é uma aranha sobre terra árida.
O sono não se povoa de estátuas de ameaça,
o amor não se faz de coração crispado:
o leito do amor é a simples terra nua.


in O Vagabundo Decepado - Egito Gonçalves

domingo, janeiro 29, 2023

Egito Gonçalves deixou-nos há vinte e dois anos...

    
José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinhos, 8 de abril de 1920 - Porto, 29 de janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano. Faleceu em 2001, e o seu último livro, Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo, foi editado cinco anos depois.
 

  

Nenhum amor é total

 

Nenhum amor é total, 
nenhum amor desenha a latitude
e longitude como linhas ideais;
na massa em fusão
há sempre uma impureza,
todo o amor tem as suas fissuras
a vigiar constantemente.
O dia, raro atinge a sua ponta extrema.

    
 

Egito Gonçalves

Hoje é dia de recordar Egito Gonçalves...



 

A Aventura é Ficar

Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida…
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra…
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo…
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à sua teia.
 

   

   

in A Evasão Possível - Egito Gonçalves

domingo, julho 31, 2022

Poesia para nos despedirmos de um mês bonito...

    
Julho abria as suas portas, preparava a armadilha, retirou da caixa o violino, os primeiros acordes prometeram o que não podiam dar, peixes de loucura que espadanam no trigo, pastéis de creme em manhãs de domingo, a cor da ternura que incendeia os gestos, anéis de esmeraldas avançando na linha do oceano. Enganador, partiu, deixando sobre a mesa alguns destroços, pedaços de caliça, o rosto da asfixia que retira o horizonte e transforma a solidão em pedra tumular. A casa arrefece, não encontro a paz, sigo a sombra dos meus pensamentos que desenha com cinza a superfície fria onde nenhum verso, nenhuma imagem ressuscita. As portas de julho já fecharam, uma visão agreste de ferrugem chove nos gonzos.


Egito Gonçalves

 

sábado, janeiro 29, 2022

Hoje é dia de recordar o poeta Egito Gonçalves...



 

A Aventura é Ficar

Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida…
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra…
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo…
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à sua teia.
 

   

   

in A Evasão Possível - Egito Gonçalves

Egito Gonçalves morreu há vinte e um anos...

    
José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinhos, 8 de abril de 1920 - Porto, 29 de janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano. Faleceu em 2001, e o seu último livro, Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo, foi editado cinco anos depois.
 

  

Nenhum amor é total

 

Nenhum amor é total, 
nenhum amor desenha a latitude
e longitude como linhas ideais;
na massa em fusão
há sempre uma impureza,
todo o amor tem as suas fissuras
a vigiar constantemente.
O dia, raro atinge a sua ponta extrema.

    
 

Egito Gonçalves

sexta-feira, janeiro 29, 2021

A Aventura é Ficar...


Um pouco conhecido mas grande poeta português do século XX de que eu gosto morreu faz hoje vinte anos - Egito Gonçalves. Fiquemos com um poema seu, dedicando-o aos nossos leitores...

A Aventura é Ficar

Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida…
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra…
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo…
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à sua teia.


 

in A Evasão Possível - Egito Gonçalves

O poeta Egito Gonçalves morreu há vinte anos...

    
José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinhos, 8 de abril de 1920 - Porto, 29 de janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano. Faleceu em 2001, e o seu último livro, Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo, foi editado cinco anos depois.
 

Notícias do Bloqueio
  
  
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
 ..........................e a esperança reproduz-se



   
Egito Gonçalves

sábado, janeiro 29, 2011

O poeta Egito Gonçalves morreu há 10 anos

José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinhos, 8 de Abril de 1920 - Porto, 29 de Janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano.


Notícias do Bloqueio

Aproveito a tua neutralidade,

o teu rosto oval, a tua beleza clara,

para enviar notícias do bloqueio

aos que no continente esperam ansiosos.



Tu lhes dirás do coração o que sofremos

nos dias que embranquecem os cabelos...

tu lhes dirás a comoção e as palavras

que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.



Tu lhes dirás o nosso ódio construído,

sustentando a defesa à nossa volta

- único acolchoado para a noite

florescida de fome e de tristezas.



Tua neutralidade passará

por sobre a barreira alfandegária

e a tua mala levará fotografias,

um mapa, duas cartas, uma lágrima...



Dirás como trabalhamos em silêncio,

como comemos silêncio, bebemos

silêncio, nadamos e morremos

feridos de silêncio duro e violento.



Vai pois e noticia com um archote

aos que encontrares de fora das muralhas

o mundo em que nos vemos, poesia

massacrada e medos à ilharga.



Vai pois e conta nos jornais diários

ou escreve com ácido nas paredes

o que viste, o que sabes, o que eu disse

entre dois bombardeamentos já esperados.



Mas diz-lhes que se mantém indevassável

o segredo das torres que nos erguem,

e suspensa delas uma flor em lume

grita o seu nome incandescente e puro.



Diz-lhes que se resiste na cidade

desfigurada por feridas de granadas

e enquanto a água e os víveres escasseiam

aumenta a raiva

..........................e a esperança reproduz-se


Egito Gonçalves

quinta-feira, abril 08, 2010

Egito Gonçalves nasceu há 90 anos

José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinhos, 8 de Abril de 1920 - Porto, 29 de Janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano.



Tudo Vai Bem, Amor!...

Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!
Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,
ninguém descarna o sonho ou a esperança,
não há fantasmas de espingarda ao ombro,
ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...
Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,
ninguém encobre estrelas com areia,
não cortam com navalhas os seios das mulheres,
não se incendeiam ghetos com corpos de crianças:
é tudo útil, simples, como um campo de trigo
- a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.
Os poetas podem passear nas ruas; a paz
não é uma aranha sobre terra árida.
O sono não se povoa de estátuas de ameaça,
o amor não se faz de coração crispado:
o leito do amor é a simples terra nua.

in O Vagabundo Decepado - Egito Gonçalves

sexta-feira, janeiro 29, 2010

Poema para um amigo


Um dos pouco conhecidos e grandes poetas portugueses do século XX de que eu gosto morreu faz hoje 9 anos - Egito Gonçalves. Fiquemos com um poema seu, dedicando-o a um grupo de amigos de Leiria...

A Aventura é Ficar

Calafetado contra os sonhos, fico
Contigo, prisioneiro dos liames
Que te cercam e cercam o teu rosto,
A tua carne rasgada nos arames.

Extinguiu-se o apelo da partida…
As quilhas já não sofrem a espuma.
Fico contigo na luta pelo dia
No endurecido leito de caruma.

Tu estás sentada sobre a terra…
Pelas searas corre um vento rude.
Teu corpo é uma espiga amadurecida
Pela água aprisionada do açude.

Corsários acamaradam no mar largo…
Mas do teu caule fino, nasce e ondeia
À minha volta, uma canção serena
Que me prende docemente à sua teia.

in A Evasão Possível - Egito Gonçalves

Egito Gonçalves partiu há 9 anos

José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinhos, 8 de Abril de 1920 - Porto, 29 de Janeiro de 2001), mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68, publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro E No Entanto Move-se. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano.



Notícias do bloqueio

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
os dias que embranquecem os cabelos…
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia como um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
............................e a esperança reproduz-se.

in A Viagem com o teu Rosto - Egito Gonçalves