domingo, julho 04, 2021

Adolfo Casais Monteiro nasceu há 113 anos

(imagem daqui)
   
Adolfo Casais Monteiro (Porto, 4 de julho de 1908 - São Paulo, 23 de julho/24 de julho de 1972) foi um poeta, crítico e novelista português.
 
Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na Universidade do Porto (Faculdade de Letras), onde foi colega de Agostinho da Silva e Delfim Santos, tendo-se formado em 1933. Foi também nessa cidade que começou por ser professor no Liceu Rodrigues de Freitas, até ao momento em que foi afastado da carreira por motivos políticos. Exilou-se em 1954 no Brasil, por motivos políticos e por lhe ser vedada a docência em Portugal.
Foi director, em 1931, da revista "Presença", depois da demissão de Branquinho da Fonseca, ainda que não tenha sido um dos seus fundadores. A revista viria ter o seu fim em 1940, tendo provavelmente contribuído para o seu encerramento as opções políticas de Casais Monteiro, que acabaria por se instalar no Brasil em 1954, após ter participado nas comemorações do 4º centenário da Cidade de São Paulo. Dele se afirma que, sendo um heterodoxo, tal como Eduardo Lourenço, é natural que viesse a exilar-se, já que a própria oposição ao regime se regia por normas (ortodoxias) que não se adequavam ao seu modo de ser.
Lecionou, então, Literatura Portuguesa em diversas universidades brasileiras, incluindo a da Bahia (Salvador), até se fixar em 1962 na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Araraquara - São Paulo. Escreveu por essa altura vários ensaios, ao mesmo tempo que escrevia, como crítico, para vários jornais brasileiros, tendo deixado contributos para o estudo de Fernando Pessoa e do grupo da "Presença".
Entre os seus trabalhos de tradução conta-se "A Germânia", de Tácito, em 1941. O seu único romance, de 1945, intitulava-se "Adolescentes".
A sua obra poética, iniciada em 1929 com "Confusão", foi influenciada pelo primeiro modernismo português, aproximando-se estilisticamente do esteticismo de André Gide. As suas críticas ao concretismo baseavam-se na ideia de que esta corrente estética promovia a impessoalidade, partindo da "mais pura das abstracções" na construção de uma "uma linguagem nova ao serviço de nada, uma pura linguagem, uma invenção de objectos - em resumo: um lindo brinquedo". Enquanto alguns autores o descrevem como independente do Surrealismo outros acentuam a influência que esta corrente estética teve no autor, como se pode verificar nos seus ensaios sobre autores como Jules Supervielle, Henri Michaux e Antonin Artaud (designando o último como "presença insustentável). Muita da sua obra poética dedica-se ao período histórico específico por ele vivido, como acontece no poema "Europa", de 1945, que foi lido por António Pedro na BBC de Londres, no decorrer da Segunda Guerra Mundial.
   
   
EUROPA
  
 

Europa, sonho futuro!

Europa, manhã por vir,

fronteiras sem cães de guarda,

nações com seu riso franco

abertas de par em par!

 

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

em que arda enfim, falsa grandeza,

a glória que teus povos se sonharam

— cada um para si te querendo toda?

 

Europa, sonho futuro,

se algum dia há-se-ser!

Europa que não soubeste

ouvir do fundo dos tempos

a voz na treva clamando

que tua grandeza não era

só do espírito seres pródiga

se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram

os que nunca perguntaram

a raça por quem serviam.

Tua glória a ganharam

mãos que livres modelaram

teu corpo livre de algemas

num sonho sempre a alcançar!

 

Europa, ó mundo a criar!

 

Europa, ó sonho por vir

enquanto à terra não desçam

as vozes que já moldaram

tua figura ideal,

Europa, sonho incriado,

até ao dia em que desça

teu espírito sobre as águas!

 

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

do teu corpo dividido?

 

Europa, tu virás só quando entre as nações

o ódio não tiver a última palavra,

ao ódio não guiar a mão avara,

à mão não der alento o cavo som de enterro

— e do rebanho morto, enfim, à luz do dia,

o homem que sonhaste, Europa, seja vida!

 

 

II

 

Ó morta civilização!

Teu sangre podre, nunca mais!

Cadáver hirto, ressequido,

á cova, à cova!

 

Teu canto novo, esse sim!

Purificado,

teu nome, Europa,

o mal que foste, redimido,

o bem que deste,

repartido!

 

Aí vai o cadáver enfeitado de discursos,

florindo em chaga, em pus, em nojo..

Cadáver enfeitado de guerras de fronteiras,

ficções para servir o sonho de violência,

máscara de ideal cobrindo velhas raivas...

Vai, cadáver de crimes enfeitado,

que os coveiros, sem descanso,

acham pouca toda a terra,

nenhum sangue já lhes chega!

 

Sobre o cadáver dançam

teus coveiros sua dança.

Corvos de negro augúrio

chupam teu sangue de desgraça.

Haja mais sangue, mais dançam!

E tu levada, tu dançando,

os passos do teu bailado

funerário!

 

Mas do sangue nascerás,

ou nunca mais, Europa do porvir!

 

         E a mão que te detenha

         à beira do abismo?

                   Do sangue nascerá!

 

         E braços que defendam

         teu dia de amanhã?

                   Do sangue nascerão!

 

O sangue ensinará

— ou nova escravidão

maior há-de enlutar

teus campos semeados

de forcas e tiranos.

 

         De sangue banharás

         teu corpo atormentado

         e, Fénix, viverás!

 

 

III

 

Na erma solidão glacial da treva

os que não morreram velam.

 

Em vagas sucessivas de descargas

A morte ceifou os nossos irmãos.

 

O medo ronda,

o ódio espreita.

Todos os homens estão sozinhos.

 

A madrugada ainda virá?

 

Vão caindo um a um na luta sem trincheiras,

 e a noite parece que não terá nunca madrugada,

mas cada gota de sangue é agora semente de revolta,

da revolta que varrerá da face da terra

os sacerdotes sinistros do terror.

A revolta a florir em esperança

dos braços e das bocas que ficaram...

 

A traição ronda,

A morte espreita.

 

Uma comoção de bandeiras ao vento...

Clarins de aurora, ao longe...

 

Os que não morreram velam.

 

 

IV

 

Eu falo das casas e dos homens,

dos vivos e dos mortos:

do que passa e não volta nunca mais...

Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,

ah, não me venha com teorias!

eu vejo a desolação e a fome,

as angústias sem nome,

os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.

E sei que vejo , sei que imagino apenas uma ínfima,

uma insignificante parcela de tragédia.

Eu, se visse, não acreditava.

Se visse, dava em louco ou em profeta,

dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,

— mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.

Olho num pasmo sem limites,

e fico sem palavras,

na dor de serem homens que fizeram tudo isto:

esta  pasta ensangüentada a que reduziram a terra inteira,

esta lama de sangue e alma,

de coisa e ser,

e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,

se o ódio sequer servirá para alguma coisa...

 

Deixai-me chorar — e chorai!

As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,

de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,

e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,

por momentos será nosso um pouco de sofrimento alheio,

por um segundo seremos os mortos e os torturados,

os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,

seremos a terra podre de tanto cadáver,

seremos o sangue das árvores,

o ventre doloroso das casas saqueadas,

— sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...

 

Eu não sei porque me caem lágrimas,

porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,

eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,

eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,

eu que estou na minha casa sossegada,

eu que não guerra à porta,

— eu porque tremo e soluço?

 

Quem chora em mim, dizei — quem chora em nós?

 

Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:

As ruas são ruas com gente e automóveis,

Não há sereias a gritar  pavores irreprimíveis,

e a miséria é a mesma miséria que já havia...

E se tudo é igual aos dias antigos,

Apesara da Europa à nossa volta, exangue e mártir,

eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,

sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,

sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,

uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...

 

V

 

A música era linda...

vinha do rádio, meiga, mansa,

macia como um corpo quente de mulher...

era doce, cariciosa e lânguida...

 

Mas eu tinha ainda nos ouvidos,

como um clamor de milhões de bocas:

“No campo de concentração hoje ocupado pelas nossas tropas

os alemães queimaram milhares de vivos num formo crematório...

Nas cubatas, os mortos misturavam-se com os moribundos...

O sargento S.S. não pôde recordar quantos homens tinha morto...

Os mortos apodrecem aos montes, e os vivos

                                               arrancam-lhes as roupas

para as fogueiras em que ao lado se aquecem...

EM MUITOS CADÁVERES ENCONTROU-SE UM CORTE LONGITUDINAL:

ERAM OS VIVOS QUE TINHAM TIRADO AOS MORTOS O FÍGADO

                                      E OS RINS PARA COMER,

A ÚNICA CARNE QUE AINDA RESTAVA NOS CADÁVARES...”

 

E lembro-me de repente dum filme muito antigo

Em que o criminoso perguntava:

“De quoi est fait un homme, monsieur le comissaire?”

e nos seus olhos lia-se o pavor

de quem vi u um abismo e não lhe sabe o fundo...

De quoi est fait un homme? De que são feitos os homens

que queimaram vivos outros homens? Que tinham centos de crianças

a morrer de fome e pavor, escravos como os pais?

que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões,

que os faziam descer ao mais fundo da degradação,

torturados, esfomeados, feitos chaga e esqueleto?

Eram esses mesmos homens

que faziam pouco da liberdade,

que vinham salvar o mundo da desordem,

que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!

Sim, que traziam a paz com as grades das prisões,

a ordem com as câmara de tortura...

 

E depois a música vem, cariciosa e lenta,

a julgar que apaga a ignomínia que lançaram sobre a terra!

A julgar que esqueceremos a abjecção dos que sonharam

apagar da terra a insubmissão do homem livre!

Não — nem cárceres, nem deportações, nem represálias, nem torturas

acabarão jamais com a insubmissão do homem livre,

do homem livre nas cadeias, cantando nas torturas,

porque vê diante de si os irmãos que estão lutando,

que hão-se-cair, para outros sempre se erguerem,

clamando em vozes sempre novas

QUE O HOMEM NÃO SE HÁ-DE SUBMETER À VIOLÊNCIA!

Homens sem partido e de todos os partidos,

que nasceram com a revolta porque não lhes vale de

                                      nada viver para serem escravos,

homens sem partido e de todos os partidos —, menos todos quantos

só sabem dizer ORDEM! e clamar VIOLÊNCIA!

os que pedem sangue porque são sanguinários, sim,

mas também todos os que nunca souberam querer nada,

os que dizem “Não é possível que se torturem os presos políticos”,

os que não podem acreditar

porque não querem ser incomodados pela pestilência

                                      dos crimes cometidos para eles

— para eles continuarem a acreditar que a ORDEM não é

                                               apenas a mordaça

sobre as bocas livres que hão-de gritar até ao fim do mundo

QUE SÓ O HOMEM LIVRE É DIGNO DE SER HOMEM!

 

                                               (Europa, 1944-45)


 
 
Adolfo Casais Monteiro

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