segunda-feira, dezembro 09, 2019

António Pedro nasceu há 110 anos

(imagem daqui)
  
António Pedro da Costa (Cidade da Praia, 9 de dezembro de 1909 - Caminha, Moledo, 17 de agosto de 1966) foi um encenador, escritor e artista plástico português.
Biografia
Filho de José Maria da Costa (Lisboa, 27 de Setembro de 1880 - ?) e de sua mulher Isabel Savage de Paula Rosa (Lisboa, Santos-o-Velho, 1884 - Cidade da Praia, c. 1930), filha de mãe inglesa. Primo-irmão da mãe de António Sousa Lara.
Mudou-se aos 4 anos para Portugal. Frequentou o Liceu Pedro Nunes em Lisboa até ao 2.º ano, mudando-se depois para o Instituto Nuno Álvares, da Companhia de Jesus, em A Guarda - Galiza, onde foi membro do grupo de teatro tendo participado em várias dezenas de peças. O 6.º ano acabou-o em Santarém e o 7.º ano em letras no Liceal de Coimbra, onde dirigiu o jornal O Bicho. Ingressou na Universidade de Lisboa, tendo frequentado a Faculdade de Direito e a Faculdade de Letras, não concluindo nenhum dos cursos. Viveu em Paris entre 1934 e 1935 onde chegou a estudar no Instituto de Arte e Arqueologia da Universidade de Sorbonne e onde assinou o Manifeste Dimensioniste.
Casou com Maria Manuela Possante, de quem não teve descendência.
Em 1933 cria a galeria UP (1933-1936), onde apresenta a primeira exposição de Maria Helena Vieira da Silva em Portugal (1935).
O surrealismo surge nos horizontes culturais portugueses a partir de 1936 em grande parte pela sua mão, em experiências literárias «automáticas» que realiza com alguns amigos. Em 1940 realiza, com António Dacosta e Pamela Boden (Casa Repe, Lisboa) aquela que é considerada a primeira exposição surrealista em Portugal: " A exposição reunia dezasseis pinturas de Pedro, dez de Dacosta e seis esculturas abstratas de Pamela Boden [...]. O surrealismo de que se falara até então vagamente, desde 1924, [...] irrompia nesta exposição, abrindo a pintura nacional para outros horizontes que ali polemicamente se definiam".
Em 1941 António Pedro visitou o Brasil. Esteve no Rio de Janeiro e em São Paulo, tendo exposto os seus quadros em concorridas mostras em ambas as cidades. Permaneceu no país uns quatro ou cinco meses, o bastante para formar um largo círculo de amizades entre a nata da intelectualidade brasileira. E partiu para a sua terra natal deixando um rastro de amizades e sinceros admiradores.
Dirigiu e editou a revista Variante, de que saíram dois números (1942; 1943) e colaborou no semanário Mundo Literário (1946-1948).
Entre 1944 e 1945 vive e trabalha em Londres, na British Broadcasting Corporation (B.B.C.), tendo feito parte do grupo surrealista de Londres.
Precursor do movimento surrealista português, fez parte do Grupo Surrealista de Lisboa, criado em 1947 por Cândido Costa Pinto (expulso ainda na fase inicial de formação do grupo), Marcelino Vespeira, Fernando Azevedo e Mário Cesarini, entre outros, tendo participado na I Exposição Surrealista em Lisboa (1949).
Com uma forte ligação ao teatro, foi diretor do Teatro Apolo (Lisboa) em 1949 e diretor, figurinista e encenador do Teatro Experimental do Porto entre 1953 e 1961. Entre 1944 e 1945, foi crítico de arte e cronista da BBC em Londres.
Viveu os últimos anos em Moledo, uma praia junto a Caminha.
Grande parte da sua obra como pintor perdeu-se, em 1944, aquando dum incêndio no seu atelier onde ficara a viver o seu amigo António Dacosta.
A Ilha do Cão, 1941
  

Nota: para recordar este grande artista, um dos meus poemas favoritos do século XX, de sua autoria:

Protopoema da Serra d’Arga

Sonhei ou bem alguém me contou
Que um dia
Em San Lourenço da Montaria
Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã foi
Deus é que rebentou
E ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para dançar à roda o estrapassado e o vira
Na volta do San João d’Arga

Não sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O resto não tem importância
O resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O resto é a Deolinda
Dança os amores que não teve
Tem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca como a da penedia

O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou para comerem outros bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos

Todas estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácil
De toda a poesia que por lá há

A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que fica depois da gente lá ter ido
Ver dançar a Deolinda
Depois da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que também foram à romaria

As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da fermentação
Nascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados

É assim na Serra d’Arga
Quando canta Deolinda
E vem gente de longe só para a ouvir cantar

Nesses dias
as larvas vêem-se menos
Pois o trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A prepararem-se para voar

Quanto aos mendigos é diferente
A sua maneira de aparecer
Uns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do ventre mendigo materno
Outros é quando chupam o seio sujo das mães
Que apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros então é em consequência das moscas e das chagas
Que vão à mendicidade

Não mo contou a Deolinda
Que só conta de amores
E só dança de cores
E só fala de flores
A Deolinda

Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que para os criar bem
Lhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os com o esterco dos outros

Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles aprendem
Ao saberem tudo
Nasce de propósito um enxame de moscas para cada um

Todas as moscas que há no Minho
Se geraram nos mendigos ou para eles
E é por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando pousam em nós
E é por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das moscas da Serra d’Arga
Ainda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Em San Lourenço da Montaria

Este poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou simplesmente achei uma maçada
Ou sim mas não talvez quem dera
Viva Deus-Nosso-Senhor

Este poema é como as moscas e a Deolinda
De San Lourenço da Montaria
E nem sequer lá foi escrito

Foi escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes de eu o passar à máquina
Etc. que não tenho tempo para mais explicações

É que eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não disse
Contagiado pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que tudo é assim em todos os dias do ano
Mas aos sábados e nos dias de romaria
Os mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São sempre mais
E creio de propósito
Ser na sexta-feira à noite
Que as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com que se apresentam sempre no dia da caridade

Elas parem-nos pelo corpo todo
Pois a carne
De tão amolecida pelos vermes
Não tem exigências especiais
E porque assim acontece
Todos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que nunca foi apertada

Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Em San Lourenço da Montaria
Além deles há a bosta dos bois
Os padres
O ar que é lindo
Os pássaros que comem as formigas
Algumas casas às vezes
Os homens e as mulheres

Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente de propósito
Exactamente para estar ali
E é por isso que se tiram as fotografias

Por isso tudo ali é naturalmente
Duma grande crueldade natural
Os meninos apertam os olhos das trutas
Que vêm da água do rio
Para elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E percebam assim que lhes agradam
Os animais comem-se uns aos outros
As pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as árvores essas
Sorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar

Assim acaba este poema da Serra d’Arga
Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Parecia a queda dum regímen
Tudo muito assim mesmo lá em cima
E cá em baixo dois suados à machadada

Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no buraco do sítio da árvore
Na mata de pinheiral
O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito
Em San Lourenço da Montaria

Moledo, agosto de 1948

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