Nova vacina contra a malária protege humanos em ensaio clínico inicial
O Plasmodium falciparum irradiado entra no fígado e não se replica
Novo tratamento profiláctico foi 100% eficaz quando dado em cinco doses.
A primeira fase de ensaios em seres humanos de uma nova vacina da
malária, que utiliza parasitas submetidos a radiação para ficarem
enfraquecidos, foi bem sucedida. Seis pessoas receberam centenas de
milhares de parasitas adormecidos, em cinco doses diferentes, e depois
foram infectadas com o Plasmodium falciparum, mas nenhuma desenvolveu malária. A descoberta publicada hoje na edição impressa da revista Science
é mais um passo para o combate desta doença, mas há muitos desafios a
serem superados para que, um dia, esta vacina chegue às pessoas que
vivem nas regiões endémicas da malária.
Nas últimas décadas, muitos investigadores tentaram produzir uma vacina
contra este parasita, só que a desilusão seguiu-se aos primeiros
resultados promissores, comprovando a complexidade de uma doença que,
anualmente, continua a matar entre 650 mil e 1,2 milhões de pessoas no
mundo. O último grande revés foi em 2012: os resultados da promissora
vacina RTS,S/AS01 mostrava que, passados cinco meses desde a última
dose, apenas 22% da população vacinada se mantinha imune contra a
malária.
A nova vacina produzida pela equipa de Stephen Hoffman - investigador
de doenças tropicais que criou a empresa norte-americana de
biotecnologia Sanaria com esse objectivo específico - é única na forma
como funciona. Ao contrário das vacinas à base de moléculas, estes
cientistas utilizaram parasitas vivos para desencadear a imunidade à
malária.
A ideia não é de hoje e já provou funcionar. Na década de 1970, investigadores dos Estados Unidos irradiaram o mosquito Anopheles gambiae, que transmite o Plasmodium falciparum,
a espécie de parasita que provoca a malária mais agressiva. Os
mosquitos irradiados serviram depois para picar soldados
norte-americanos.
Na presença destes parasitas irradiados, os militares ganhavam imunidade ao Plasmodium e, quando eram picados por um insecto infectado, o seu sistema imunitário reagia contra o parasita, travando a doença.
Quando o parasita da malária é injectado por um mosquito num humano,
dirige-se para o fígado, onde acaba por se instalar numa célula
hepática. Aqui, replica-se milhares de vezes, ganha uma nova forma e sai
do fígado para a corrente sanguínea. Então, ataca os glóbulos
vermelhos, onde se multiplica mais algumas vezes. É quando os parasitas
rebentam com milhares de glóbulos vermelhos ao mesmo tempo que as
pessoas infectadas têm febres altas, sentem fortes dores de cabeça e
dores corporais, e podem até morrer.
No caso dos mosquitos irradiados, como agora se fez, os parasitas
deixaram de causar a doença: apesar de estarem vivos quando infectaram o
organismo, e mesmo sendo capazes de se instalar numa célula do fígado,
já não conseguiram multiplicar-se aí. Especula-se que esta paragem na
infecção dê uma oportunidade ao sistema imunitário para "estudar" o Plasmodium e reconhecê-lo numa próxima vez que o organismo seja infectado pelo parasita na natureza.
A nova vacina replicou este processo aplicados nos anos de 1970,
retirando os mosquitos da equação. Primeiro, esta equipa retirou das
glândulas salivares do mosquito os esporozoítos (a fase do parasita que
vai para o fígado) e depois, "pela primeira vez, conseguiu limpar os
esporozoítos e criopreservá-los" vivos, explica ao PÚBLICO Miguel
Prudêncio, do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, que investiga a
malária.
A equipa já tinha tentado realizar ensaios clínicos (em humanos) com
este processo, mas a vacina era subcutânea ou intradérmica, como
costumam ser dadas as vacinas. Dessa vez, não teve sucesso e as pessoas
vacinadas não adquiriram imunidade à malária, por isso os cientistas
experimentaram injectar a vacina directamente no sangue, algo que já
tinha dado resultado em experiências semelhantes em primatas.
No total, 40 pessoas receberam a vacina, em doses diferentes, neste
ensaio clínico de fase 1: 12 dos 15 voluntários vacinados com as doses
mais altas ficaram imunizados.
Estes 15 voluntários estavam divididos em dois grupos. Nove pessoas
receberam quatro doses da vacina, cada uma com 135 mil parasitas
atenuados: neste grupo, três pessoas adoeceram. Mas no grupo dos seis
participantes, que receberam cinco doses da vacina com a mesma
quantidade de parasitas, todos ficaram imunizados. Não se sabe ainda
qual é a razão para a dose extra fazer a diferença.
Mas como funcionará a vacina? A equipa especula que ela estimula o
sistema imunitário a reconhecer mais de mil moléculas (antigénios) que
estão à superfície do esporozoíto, dizem os autores no artigo da Science. A vacina RTS,S/AS01, que em 2012 se mostrou não funcionar, só provocava a imunidade a um destes antigénios do Plasmodium.
"Neste pequeno estudo, mostrou-se que a vacina é segura e bem tolerada,
sem efeitos negativos sérios", diz por sua vez Robert Seder, um dos
autores do trabalho, que pertence ao Centro de Investigação de Vacinas
do Instituto Nacional para as Alergias e as Doenças Infecciosas, em
Maryland, nos EUA. "Este estudo prova que o número de doses é crítica
para a imunização e que conseguimos alcançar um grande nível de
protecção", acrescenta, numa entrevista num podcast da Science.
Apesar de garantir que este desenvolvimento é "muito importante",
Miguel Prudêncio defende que há vários "limitações" e "etapas a
ultrapassar" para a vacina chegar a quem mais precisa. "Ter uma vacina
que depende de cinco tomas é um problema", diz o cientista,
acrescentando que é um desafio pensar em dar vacinas intravenosas a
bebés nas populações das regiões afectadas.
Além disso, a preservação destes parasitas nas vacinas requer um
sistema de refrigeração que em África, uma das regiões mais afectadas
pela malária, é difícil de manter. O cientista português lembra ainda
que a produção em massa tem de garantir que nenhum parasita irradiado
está suficientemente saudável para causar a malária: "Não haverá uma
vacina já amanhã."