Xutos & PontapésO passado foi lá atrásA noite já ia alta para os lados do Bairro Alto. Entre tascas e copos, Zé Pedro fixa o olhar em Tim e sugere: “Olha lá! Um título excepcional era ‘Circo de Feras’.” E assim ficou. A vida, que até ia algo torta, endireitou-se. “Esse foi o disco da nossa viragem. Já tínhamos dado um grito de revolta com ‘Cerco’ mas ninguém nos ligara nenhuma. Acho que aquela era a nossa última tentativa. Era o nosso ou vai, ou racha!”, conta Kalu.A vida ia torta mas em Janeiro de 1987 o álbum ‘Circo de Feras’ permitiu aos Xutos assumirem-se como um caso isolado na música portuguesa ‘Circo de Feras’, o disco que transformou os Xutos numa quase força invencível, foi gravado há precisamente 20 anos e é considerado hoje não só o mais emblemático disco da carreira da banda como um dos mais importantes da história da música portuguesa. O grupo recria-o hoje na Praça de Toiros do Campo Pequeno (22h00), num espectáculo que se repete amanhã às 16h00 e às 21h00 (bilhetes entre os 15 e os 30 euros).
Aos temas do disco, que será tocado na íntegra, a banda somará outros gravados na altura como ‘A Casinha’ e ‘A Minha Aventura Homossexual com o General Custer’. Entre os convidados estão o grupo de percussões Wok e um coro de gospel. E porque se trata de ‘Circo’, não irão faltar ainda trapezistas, equilibristas e até uma trapezista “vestida de nua”.
Gravado entre Outubro e Dezembro de 1986 e editado em Fevereiro de 1987, ‘Circo de Feras’ foi o primeiro álbum gravado pelos Xutos para uma multinacional, a Polygram, hoje Universal. Foi Tozé Brito quem os levou a assinar. “Acho que eles tiveram algum receio de que nós, por sermos uma multinacional, os condicionássemos, mas quando fechámos o contrato eu disse-lhes: ‘Vocês vão e gravam o que quiserem’”, conta.
‘Circo de Feras’ foi gravado em 12 dias úteis, ainda na era do vinil, cinco canções de um lado, quatro do outro, qual delas a melhor: ‘Contentores’, ‘Sai Prà Rua’, ‘Pensão’, ‘Desemprego’, ‘Esta Cidade’, ‘Não Sou o Único’, ‘N’América’, ‘Vida Malvada’ e ‘Circo de Feras’.
Tozé Brito já conhecia os Xutos do Rock Rendez-Vous. “Era incrível como aqueles tipos que enchiam a sala e punham toda a gente a cantar não tinham nenhuma editora interessada”. A verdade é que na altura há muito que a banda já havia dito adeus à vida atinada. “Eram vistos como um grupo maldito, até por causa do nome, e ninguém lhes pegava”, opina Tozé Brito, que fez a primeira abordagem ao grupo durante um concerto. À data todos se terão lembrado de uma frase proferida um dia por Zé Pedro num momento de maior esmorecimento: “Descansem, as editoras hão-de cá vir.”
A aposta da Polygram foi em grande. “Contratámos do melhor na altura. O melhor produtor, o melhor técnico de som e o melhor estúdio”, conta Tozé Brito. O produtor era Carlos Maria Trindade (Heróis do Mar), o técnico de som era José Manuel Fortes e o estúdio o ‘luxuoso’ Angel II, hoje um armazém abandonado na Rua de Centieira, na zona sul do Parque das Nações.
Kalu gravou o disco sempre na companhia do filho Francisco, de seis anos, Zé Pedro já denotava a veia de rock star, Tim e João Cabeleira eram os introvertidos e Gui “o cómico da companhia”, lembra Tozé Brito.
Pese embora o facto de terem gravado o primeiro disco ‘a sério’, a banda nunca acusou o peso da responsabilidade. Kalu fala de deslumbramento mas quem trabalhou com o grupo garante que apenas se recordam de uma banda muito bem organizada. “Pela experiência que tinha, estava habituado a bandas em que cada um tocava para seu lado, e os Xutos já denunciavam um enorme profissionalismo. Aquilo estava tudo tão bem afinado que o meu papel como técnico acabou por ser muito simples. Só tive que não estragar”, conta José Fortes. ‘Circo de Feras’ custou cerca de 7500 euros. Hoje um disco dos Xutos nunca custaria menos de 50 mil.
Quando o grupo mostrou os temas que tinha em carteira ninguém queria acreditar. “Eles apareceram com umas 40 canções. Difícil foi escolher”, lembra Tozé Brito. “Na altura andávamos com um poder de composição impressionante, porque passávamos dias e dias fechados na garagem. À data da gravação do ‘Circo de Feras’ tínhamos até mais de meio álbum do ‘88’ (que viria a sair depois) feito”, explica Kalu.
Das memórias que ficaram, o baterista guarda apenas uma mágoa. “Não me deixaram gravar com uma bateria acústica. Gravei o disco meio-electrónico. Aquele som que se ouve é dos ‘pads’ que se usavam na altura. Hoje acho que gostava de o regravar.”
Foi a escolha do primeiro single o único factor que gerou discórdia. Produtor e editora queriam ‘Contentores’. A banda queria ‘Sai Prà Rua’. Foi Zé Pedro quem fez o maior finca-pé. Ganhou o guitarrista. “Acho que esse era o tema que tinha mais a ver com o nosso passado.
‘Contentores’, atendendo ao percurso punk do grupo, era uma canção mais romântica, e eu não nos queria entregar de bandeja à editora”, conta. As rádios, no entanto, pegaram melhor em ‘Contentores’, ainda que para a época os Xutos fossem uma banda ‘pesada’. Foi a Rádio Comercial a estação que esteve mais aberta a passar os temas da banda, enquanto a Rádio Renascença passou alguns mas muito a medo.
Foi com ‘Contentores’ que a banda explodiu para a fama. Seguiram-se ‘Vida Malvada’, ‘Não Sou o Único’ e, claro, ‘Circo de Feras’. “Aquele foi o melhor disco da carreira dos Xutos. Um disco sem ‘palha’. Só singles”, afirma Tozé Brito. “Até hoje o mais equilibrado do grupo”, remata. ‘Circo de Feras’ deu início ao culto e transformou os Xutos num caso isolado. E já lá vão 20 anos...
"JÁ ERAM QUASE PERFEITOS" (Carlos Maria Trindade, produtor)
- Qual foi a primeira impressão que teve dos Xutos?
- Quando fui convidado para produzir ‘Circo de Feras’, julgava que se tratava de uma banda punk, desorganizada, mas a verdade é que dentro do amadorismo da altura já eram muito profissionais.
- Até que ponto ‘Circo de Feras’ foi inovador?
- Uma das inovações foi termos gravado uma série de sons industriais, algo que nunca tinha sido feito e muito menos por uma banda de rock. Para o tema ‘Desemprego’, gravámos as rotativas das máquinas de cortiça e aquilo foi um requinte.
- No final das gravações, teve a certeza de que estava ali um disco especial?
- Quando terminaram as gravações fiquei com a ideia de que os Xutos eram uma banda quase perfeita. As letras eram de primeira água mas nunca previ que viessem a ser o estoiro que se revelaram. À escala portuguesa, comparo os Xutos aos U2.
CATARINA FURTADO ESTEVE LÁ
O videoclip de ‘Sai Prà Rua”, o primeiro single retirado de ‘Circo de Feras’, foi gravado na Fábrica de Cortiça, no Montijo, que pertencia ao pai de Kalu. “A história desse videoclip era muito engraçada, porque o realizador transformou-nos assim numa espécie de cinco vingadores que íamos salvar uns putos de uns mafiosos que raptavam criancinhas”, recorda o baterista. Entre as jovens que faziam de figurantes estava Catarina Furtado, à data das gravações com apenas 15 anos. A hoje apresentadora da RTP é precisamente a jovem que no final do vídeo é salva por Kalu, saindo nos braços do baterista.
"É UM DISCO MUITO ESPECIAL"
Quando terminaram as gravações de ‘Circo de Feras’, José Manuel Fortes, técnico de som, não teve dúvidas nenhumas que “estava ali um disco especial”.
"VINHA DE LÁ MARAVILHADO"
Tozé Brito acompanhou as gravações o máximo que pôde. “Sempre que ia a estúdio vinha de lá maravilhado. Cada canção era melhor do que a anterior”, diz.
OPINIÕESRUI UNAS, APRESENTADOR DE TV
"Foi o primeiro que ouvi ‘ad nauseam’. Tinha uma ‘K7’ com a gravação e andava sempre no walkman."
ANTÓNIO FEIO, ACTOR E ENCENADOR
"‘Circo de Feras’ destaca-se mais pelo seu conjunto do que por um tema em particular."
ELIZABETE JACINTO, PILOTO
"Esse disco marcou o verdadeiro início da música portuguesa e trouxe-lhe alguma modernidade."
MANUEL ALEGRE, POLÍTICO E POETA
"Teve muito impacto, principalmente entre a juventude, por causa de canções que criaram empatia com ela."
ANA BOLA, ACTRIZ
"Um álbum que teve um percurso idêntico à banda que o criou: tornou-se um caso raro de longevidade."
JÚLIO ISIDRO, APRESENTADOR
"Um disco que marcou um momento de viragem na carreira dos Xutos: tornaram-se ainda mais populares."
CARLOS XAVIER, EX-FUTEBOLISTA
"Foi esse disco que relançou a música rock portuguesa. ‘Contentores’ tem uma batida marcante."
JORGE PÊGO, RADIALISTA
"Esse disco ajudou uma banda underground a sair da zona escura. Foi ele que deu crédito aos Xutos & Pontapés."
Miguel Azevedo, N.T. e V.F.