Estudo genético alargado revela costumes de acasalamento dos misteriosos cavaleiros Ávaros
Em 568 d.C., de acordo com registos contemporâneos, cavaleiros guerreiros das estepes da Mongólia, chamados Ávaros, invadiram as planícies relvadas que ladeavam o rio Danúbio, mais ou menos no território da Hungria moderna.
Juntamente com outros grupos da Ásia Central, formaram um novo centro de poder na Europa, obrigando o Império Bizantino a pagar tributo. Mas não deixaram qualquer registo escrito.
Agora, usando amostras de ADN recolhidas em centenas de locais de sepultamento, incluindo cemitérios ávaros inteiros, uma equipa de investigadores preencheu algumas das lacunas que existiam no nosso conhecimento da cultura destes misteriosos cavaleiros.
Publicado em abril na revista Nature, o estudo, que inclui a mais longa árvore genealógica baseada em ADN já publicada, abrangendo nove gerações, usou dados de parentesco para reconstruir os padrões de acasalamento dos ávaros, a sua mobilidade e até a política local.
O estudo é o maior exemplo de uma nova tendência na investigação do ADN antigo: estudar não só indivíduos isolados, mas comunidades e famílias inteiras - como é o caso que o ZAP recentemente deu a conhecer do estudo da família de Alíria Rosa, a mulher colombiana que escapou ao Alzheimer.
“A ideia de fazer o cemitério inteiro é fantástica”, diz à Science Florin Curta, historiador da Universidade da Florida, que não esteve envolvido na investigação. “É uma forma de escrever história na ausência de fontes escritas“.
O ADN antigo dos ossos dos Ávaros já tinha ajudado a esclarecer a questão da origem deste povo nómada.
Num estudo anterior, os investigadores mostraram que muitos Ávaros enterrados na Hungria por volta de 600 d.C. partilhavam ascendência com pessoas enterradas na Mongólia apenas algumas décadas antes, o que implica uma migração de longa distância que cobriu mais de 7.000 quilómetros no espaço de uma geração.
Mas outras questões permaneciam, tais como a forma como os Ávaros organizaram a sua sociedade e se adaptaram os seus costumes ao seu novo lar.
Para saber mais, a equipa de geneticistas, arqueólogos e historiadores sequenciou o ADN de mais de 400 esqueletos de quatro cemitérios situados num raio de 200 quilómetros; a datação por radiocarbono mostrou que os enterramentos abrangeram os 250 anos de domínio dos Ávaros na região.
A equipa procurou então relações de primeiro ou segundo grau: mães e filhos, irmãos e irmãs, tias e tios. A abordagem de todo o cemitério tornou possível reconstruir árvores genealógicas inteiras, algumas contendo dezenas de indivíduos.
A árvore completa, abrangendo nove gerações, estendia-se desde um homem fundador enterrado pouco tempo depois da chegada dos Ávaros até um descendente enterrado 250 anos mais tarde.
“A abordagem comunitária fez com que estas pessoas ganhassem realmente vida para mim”, diz Zsófia Rácz, arqueóloga da Universidade Eötvös Lorán e co-autora do estudo.
“Detetámos que escavou um dos sítios. as suas comunidades – é algo que nunca teríamos visto apenas através de fontes escritas ou da arqueologia”, explica a investigadora, que participou nas escavações de um dos cemitérios.
O ADN também mostrou que os Ávaros enterravam pessoas com laços de parentesco próximos em conjunto, no que se poderia considerar como parcelas familiares.
“A nível cultural, isto mostra que o parentesco biológico era importante nesta sociedade, e sugere que a sociedade ávara enfatizava a filiação biológica”, diz Zuzana Hofmanová, geneticista do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva e também a co-autora do estudo.
Todos os homens do estudo descendiam de um pequeno número de homens adultos, enterrados com ricos objetos, que se supõe serem os fundadores da comunidade.
Mas “todas as mulheres adultas são externas e não têm pais no cemitério”, diz o geneticista Guido Gnecchi-Ruscone, também investigador do Max Planck, que liderou o esforço para reconstruir as árvores genealógicas. Em vez disso, as mulheres tendem a ter parentes distantes noutros cemitérios.
Este padrão corresponde a uma prática que os etnógrafos designam por patrilocalidade, em que os homens permanecem no local enquanto as mulheres saem dos seus locais de nascimento para encontrar parceiros, um padrão também observado nos antigos agricultores europeus, entre outros.
O ADN também revelou poligamia e “uniões leviráticas”, em que homens estreitamente relacionados – irmãos, ou pai e filho – tinham filhos com a mesma mulher.
Este padrão era “arqueologicamente invisível, mas graças aos dados genéticos pudemos ver claramente o papel das mulheres”, diz Tivadar Vida, arqueólogo da Eötvös Loránd e coautor do novo artigo. “As mulheres estavam ligadas a diferentes comunidades”.
O sistema patrilinear rigoroso e os casamentos com mulheres não locais parecem ter ajudado os Avar a evitar a consanguinidade: depois de analisar o ADN de centenas de pessoas, a equipa não encontrou exemplos de crianças nascidas de parentes próximos ou mesmo de pessoas separadas por até cinco graus.
É provável que a tradição oral tenha ajudado os ávaros a manter as linhas de sangue corretas ao longo dos séculos, impedindo os casamentos com primos distantes. “Não sabemos muito sobre a língua ávara, mas parece que sabemos uma das coisas sobre as quais eles comunicavam”, diz Hofmanová.
Os investigadores encontraram mesmo evidências de mudanças políticas nos dados de ADN. Num dos cemitérios, várias gerações de homens estreitamente relacionados foram enterrados perto uns dos outros. Depois, após 650 d.C., já não há descendentes da linha masculina original enterrados no cemitério.
Assim, aparentemente uma nova linhagem masculina casa-se e os seus descendentes são enterrados a cerca de 100 metros de distância, sem os cavalos que normalmente acompanhavam os homens nas sepulturas anteriores, o que assinala uma mudança cultural.
Talvez um clã local tenha perdido o favor após uma mudança na liderança, por exemplo. Mas a rutura não é total: as duas partes do cemitério, e a longa árvore genealógica, estão ligadas por meios-irmãos maternos. “A ligação é feita através de uma mulher”, diz Hofmanová.
Os Ávaros mantiveram as suas práticas sociais mesmo quando outros aspetos da sua sociedade se alteraram drasticamente.
Por exemplo, com base na datação por radiocarbono e em mudanças nos padrões de assentamento e sepultamento, os arqueólogos sabem que cerca de 50 anos depois de chegarem à Europa, quando sofreram uma derrota retumbante às mãos do Império Bizantino, os Ávaros abandonaram o seu estilo de vida nómada, estabeleceram-se em aldeias e cultivaram cereais.
Mas o ADN mostra que as suas tradições patrilocais persistiram. “Apesar de se terem estabelecido, mantiveram as suas tradições de organização social”, diz Rácz.