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segunda-feira, outubro 29, 2018

O cientista Bernardino António Gomes nasceu há 250 anos


Bernardino António Gomes (1768-1823): 250 anos do nascimento, 206 anos da purificação do primeiro alcalóide


Em 29 de outubro de 2018, assinalaram-se os 250 anos do nascimento de Bernardino António Gomes (1768-1823), médico e cientista português, aniversário que já foi aqui lembrado por Carlos Fiolhais. A sua contribuição pioneira para a extracção e purificação do primeiro alcalóide na forma de base pura, obtido da casca da quina (cinchona), usada no tratamento da malária, foi um feito notável que está na origem do desenvolvimento da química medicinal moderna baseada em compostos bioactivos.  
Ao composto que obteve na forma cristalina e identificou com a “virtude febrífuga” das quinas, chamou cinchonino, nome que a partir de 1819, passou a ser cinchonina, seguindo a nomenclatura adoptada universalmente para os alcalóides. Este composto que apresenta as mesmas caracterísiticas terapêuticas da casca de quina, não existia noutras cascas de árvores que eram comercializadas, por fraude ou desconhecimento, também como medicamento para as febres intermitentes da malária. Este trabalho notabilíssimo, realizado em 1812 por solicitação da Academia das Ciências de Lisboa, no Laboratório da Casa da Moeda, de que era director Bonifácio de Andrada e Silva, abria assim o caminho para métodos de controlo de qualidade químicos e de programas de pesquisa de outras plantas que tivessem o mesmo princípio activo.
A descoberta de Gomes foi confirmada em 1820 por Pelletier e Caventou, autores que identificaram um outro dos alcalóides na casca da quina, a quinina, que existe em maior quantidade na casca, e que haviam já descoberto e purificado, em 1817 a estricnina, seguindo em ambos os casos o procedimento de Bernardino António Gomes. É de realçar que a morfina havia já sido isolada em 1806 por Friedrich Serturne, mas a obtenção do primeiro alcalóide puro e o estabelecimento dos princípios do método corrente que permitiu, a partir das primeiras décadas do século XIX, purificar dezenas de compostos alcalóides podem ser atribuídas à publicação de Bernardino António Gomes.

Podemos perguntar por que razão não são mais conhecidas estas contribuições de Bernardino António Gomes e por que razão esta efeméride tão redonda (250 anos) está a passar, tanto quanto sabemos, quase despercebida. Obviamente a questão de Portugal ser um país periférico, sem grande tradição científica, tem sido relevante, mas não é essa a única razão.

Gomes, embora com grande entusiasmo pela investigação irá continuar essencialmente um médico (notável e pioneiro também na vacinação contra a varíola e no estudo da elefantíase entre outros trabalhos), mas não continuou o trabalho sobre a quina, nem o estendeu a outras plantas, nem motivou outros investigadores portugueses a continuaram esse trabalho. Se o trabalho analítico e químico de Bernardino António Gomes tivesse tido continuidade, teria tido com certeza muito mais visibilidade. Assim, aquilo que seria provavelmente a grande motivação e o resultado mais importante do trabalho: identificar a “virtude febrífuga das quinas” que designaríamos actualmente pela busca do princípio activo ou do composto responsável pelo efeito terapêutico, abrindo a possibilidade pioneira na ciência da época de obter este composto de outras formas, substituíndo a necessidade de recorrer à quina, foi rapidamente esquecido e não teve continuidade. 
Para o abandono do projecto e para o quase esquecimento do feito concorreram em grande medida razões locais. Os resultados de Bernardino António Gomes foram duramente criticados por José Feliciano de Castilho no "Jornal de Coimbra" com repercussões internacionais no "Investigador Português em Inglaterra". Tomé Rodrigues Sobral que arbitrou a disputa, optou por uma resposta inconclusiva sugerindo que a “virtude febrifúga” poderia ter uma origem múltipla, pondo-se assim termo à continuação do projecto. 
Mais tarde, com a República e com o Estado Novo, Bernardino António Gomes foi sendo evocado, embora de forma tímida, como um grande cientista português. Mas estas evocações que podem confundir-se com as formas propagandísticas do nacionalismo não ajudaram a consolidar a sua memória num país com tão pouca tradição em homenagear de forma devida a sua ciência. Tem um busto no Jardim Botânico de Lisboa, o nome em algumas ruas, foi declarado fundador da dermatologia portuguesa e patrono da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e, este ano, foi incluído numa emissão filatélica “Vultos da História e da Cultura”, a qual inclui o Padre Himalaya, outro cientista português que deveria ser mais conhecido, mas é pouco, muito pouco, como reconhecimento de tão notável personagem da história da ciência e da cultura portuguesas.

Bernardino António Gomes nasceu a 29 de outubro de 1768 e foi baptizado, segundo Virgílo Machado, em Paredes do Coura, embora haja autores, incluindo o próprio filho homónimo, indicam como local de nascimento Arcos de Valdevez. Doutorou-se em medicina na Universidade de Coimbra em 1793, tendo ido exercer medicina para Aveiro até 1797. O interesse pela investigação chamava-o e muda-se para Lisboa onde pouco tempo depois é médico da Armada, embarcando para o Brasil. Dessa viagem surge uma publicação sobre a canela do Rio de Janeiro a que se seguirão vários outros trabalhos sobre plantas medicinais do Brasil. Casa em 1801 com Leonor Violante Mourão, jovem viúva sete anos mais nova com quem tem cinco filhos, o mais conhecido é o homónimo Bernardino António Gomes filho que foi professor da Universidade de Coimbra. Este casamento foi tumultuoso e envolveu separações e um divórico público que foi até já alvo de um estudo académico. Em 1806 publicou um trabalho sobre o tifo. Em 1812, esteve envolvido na fundação do Instituto Vacínico de que foi o primeiro director. Incansável investigador e autor, escreveu também sobre as boubas (peste bubónia), a desinfecção de cartas, doenças de pele, a elefantíase e a ténia. Em 1817 acompanhou como médico a princesa Maria Leopoldina até ao Rio de Janeiro. Morreu com 54 anos em Lisboa de “afecção malígna no estômago”. Foi sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa (1812), cavaleiro da Ordem de Cristo (1812), Médico Honorário da Câmara Real (1813), entre outras distinções.

Há ainda bastantes aspectos da vida e dos trabalhos de Bernardino António Gomes que merecem ser melhor estudados. Felizmente, há neste momento pelo menos duas investigadoras, estudantes de doutoramento, que estão a realizar estudos que poderão lançar mais alguma luz sobre os seus trabalhos. Conhecer e divulgar na justa medida a história das descobertas e polémicas em que se viu involvido é uma contribuição importante para entendermos melhor a nossa História e as razões das nossas dificuldades passadas e pode contribuir para uma maior confiança colectiva na ciência portuguesa. 
Bibliografia
  • AMORIM DA COSTA, A. M., "Thomé Rodrigues Sobral (1759-1829). A Química ao serviço da Comunidade" in História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal, Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, 1 (1986), 373-402.   


  • HEROLD, Bernardo, "Bernardino Gomes, pai e Agostinho Lourenço, precursores portugueses da química dos alcalóides e dos polímeros sintéticos" in História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal, Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, 1 (1986), 417-433.


  • MACHADO, Virgílio, O Doutor Bernardino Gomes (1768-1823) : a sua vida e sua obra. Lisboa : Portugalia, 1925 (disponível em http://purl.pt/420


  • SIMÕES, Manuela Lobo da Costa, Um divórcio na Lisboa oitocentista. Livros Horizonte: Lisboa, 2006. 

  • SUBTIL, Carlos, Bernardino António Gomes: ilustre médico iluminista nascido em Paredes de Coura. Município de Paredes do Coura, 2017.