quarta-feira, novembro 23, 2011

Hoje é dia de ler poesia surrealista


Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família de origem judaica. Em 1946, com 16 anos, viaja para Lisboa para frequentar o 6º e o 7º ano do curso liceal. Em 1948, matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra e, em 1949, muda para a Faculdade de Letras onde frequenta, durante três anos, o curso de Filologia Romântica, não tendo terminado o curso. Três anos mais tarde regressa a Lisboa, começando por trabalhar durante algum tempo na Caixa Geral de Depósitos e depois como angariador de publicidade, sendo que durante este tempo vive, por razões de ordem vária e pessoal, numa «casa de passe».

Em 1954, data da publicação do seu primeiro poema em Coimbra, regressa à Madeira onde trabalha como meteorologista, seguindo depois para a ilha de Porto Santo. Quando em 1955 regressa a Lisboa, frequenta o grupo do Café Gelo, de que fazem parte nomes como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo. Durante esse período trabalha como propagandista de produtos farmacêuticos e redactor de publicidade, vivendo com rendimentos baixos. Três anos mais tarde, em 1958, publica o seu primeiro livro, O Amor em Visita. Durante os anos que se seguiram vive em França, Holanda e Bélgica, países nos quais exerce profissões pobres e marginais, tais como: operário no arrefecimento de lingotes de ferro numa forja, criado numa cervejaria, cortador de legumes numa casa de sopas, empacotador de aparas de papéis e policopista. Em Antuérpia, viveu na clandestinidade e foi guia dos marinheiros no sub mundo da prostituição.

Repatriado em 1960, torna-se encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, percorrendo as vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo. Nos dois anos seguintes publica os livros A Colher na Boca, Poemacto e Lugar. Em 1963 começa a trabalhar para a Emissora Nacional com redactor de noticiário internacional, período durante o qual vive em Lisboa. Ainda nesse mesmo ano publica Os Passos em Volta e produz A máquina de emaranhar paisagens. Em 1964 trabalha nos serviços mecanográficos de uma fábrica de louça, datando desse ano a sua participação na organização da revista Poesia Experimental. Nesse ano reedita ainda Os Passos em Volta, escreve «Comunicação Académica» e publica Electronicolírica. Em 1966 participa na co-organização do segundo número da revista Poesia Experimental e no ano seguinte publica Húmus, Retrato em Movimento e Ofício Cantante. Data de 1968 a sua participação na publicação de um livro sobre o Marquês de Sade, o que o leva a ser envolvido num processo judicial no qual foi condenado. Porém, devido às repercussões deste episódio consegue obter suspensão de pena, facto este que não conseguiu evitar que fosse despedido da Rádio e da Televisão portuguesas. Refugia-se na publicidade e, posteriormente, numa editora onde desempenha o cargo de co-gerente e director literário. Ainda nesse ano publica os livros Apresentação do Rosto, que foi suspenso pela censura, O Bebedor Nocturno e ainda Kodak e Cinco Canções Lacunares.

Em 1970 viaja por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Dinamarca, publicando nesse ano a terceira edição de Os Passos em Volta e escreve Os Brancos Arquipélagos. Em 1971 desloca-se para Angola onde trabalha como redactor numa revista. Enquanto repórter de guerra é vítima de um grave desastre tendo que ser hospitalizado durante três meses. Data ainda desse ano a publicação de Vocação Animal e a produção de Antropofagias. Regressa a Lisboa e parte de novo, desta vez para os E.U.A., em 1973, ano durante o qual publica Poesia Toda, obra que contém toda a sua produção poética, e faz uma tentativa frustrada de publicar Prosa Toda. Em 1975 passa alguns meses na França e Inglaterra, regressando posteriormente a Lisboa onde trabalha na rádio e em revistas, meios restritos de sobrevivência económica. Em 1976, Herberto Helder participa na edição e organização da revista Nova que, sendo posterior à revolução de 25 de Abril de 1974, reconhecia na Literatura portuguesa características que a aproximaram às Literaturas latino-americana, africana e espanhola, declinando uma direcção literária revolucionária cuja actividade não ultrapassou o plano teórico devido à instabilidade política portuguesa que se fazia sentir na altura. Nos anos que se seguiram publicou as obras Cobra, O Corpo, O Luxo, A Obra e Photomaton e Vox. A última referência encontrada da instabilidade biográfica de Herberto Helder referia-se ao facto de o poeta ter abandonado todas as suas anteriores actividades e de viver no mais cioso dos anonimatos.

in CITI

Há cidades cor de pérola onde as mulheres

V



Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada.

Mulheres que eu amo com um des-
espero .fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

in
Lugar (1962) - Herberto Helder

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