quarta-feira, agosto 10, 2011

Há meio milénio Malaca caía nas mãos dos Portugueses

Faz hoje 500 anos: um punhado de portugueses, liderados por um capitão destemido e visionário, tomavam pela força das armas uma das grandes cidades portuárias da Ásia. Era o dia 10 de Agosto de 1511 e Afonso de Albuquerque e os seus homens acabavam de conquistar Malaca. A cidade iria perdurar 130 anos nas mãos dos portugueses, até ceder, após um cerco devastador, às armas holandesas, em Janeiro de 1641. Por esta altura, o grande empório era já uma pálida sombra do que fora durante séculos, e nunca mais readquiriu o seu antigo brilho. Não sou grande adepto de comemorações de glórias militares passadas, mas não é despropositado expor umas poucas de reflexões acerca da efeméride que hoje se assinala e que, suspeito, não fará manchetes de jornais nem abertura de noticiários. 

A primeira diz respeito à cidade em si. Malaca não era uma cidade portuária qualquer. Dominava uma ligação fundamental (o estreito com o mesmo nome) entre o Golfo de Bengala e o Índico Ocidental e o Extremo Oriente, o que lhe permitia captar notáveis proveitos desta posição-charneira, quer do ponto de vista económico, quer político e geoestratégico. A sua fama ecoava por toda a Ásia e chegava, em imagens difusas e frequentemente exageradas, à Europa. Do mesmo modo, o sultanato que Albuquerque derrotou não era um reino qualquer, antes ocupava uma posição regional hegemónica e detinha um prestígio ímpar: fora um importante foco de difusão do Islão e da língua e cultura malaia no Sueste Asiático insular ao longo de todo o século XV, estava sob a proteção formal da China Ming e possuía uma linhagem real que remontava ao berço da civilização malaia (o império de Srivijaya).
A segunda refere-se ao caráter inesperado do golpe do governador português; foi uma surpresa para todos. Nem os portugueses da Índia contavam com uma conquista numa paragem tão remota (a principal base portuguesa era, nessa altura, Cochim, na costa ocidental indiana), nem o próprio rei D. Manuel ou a corte de Lisboa alguma vez esperavam que o governador, que fora a Malaca resgatar os cativos portugueses que lá haviam ficado em 1509, esperavam que, em vez de obter um acordo com o rei da terra e construir uma fortaleza, como fora a prática seguida até então, Albuquerque tomasse a cidade. Soaram, portanto, tanto na Índia como no reino, todo o tipo de alarmes e denúncias contra o governador, que inimigos era coisa que não lhe faltava, acusado de prepotência, de não respeitar as ordens régias e, inclusivamente, de pretender declarar-se rei da terra e eximir-se à obedência real.
Contudo, do ponto de vista dos malaios, a surpresa não foi menor. A tradição sueste-asiática era estranha a um ato de força semelhante. A guerra era ali mais ou menos endémica, mas com regras próprias. Num mundo onde a riqueza era móvel, a prática comum era a da escaramuça, da pilhagem, da depredação de recursos e obtenção de prestígio. As cidades eram construídas em material perecível, logo, um rei derrotado refugiava-se no interior, o inimigo destruía a sua capital e retirava-se com a presa, permitindo aquele regressar, reconstruir a sua capital e reatar a sua posição. Por outro lado, o prestígio da realeza não era um mero objeto de marketing político; era onde verdadeiramente repousava o poder e, consequentemente, a riqueza. Portanto, o saque e a destruição de uma capital era um revés temporário; a captura ou morte do rei (neste caso, sultão), isso sim, podia ser uma séria derrota. Ora, quando a 10 de Agosto de 1511, os portugueses saíram vitoriosos, o sultão fugiu e aguardou que os intrusos saqueassem a cidade e se fossem embora, como era hábito; e foi com indisfarçável apreensão que verificou que, não só não se foram embora, como estavam a construir uma torre de pedra.
A terceira reflexão incide sobre as ideias, mais ou menos embrulhadas em orgulho nacional, que envolvem os feitos, as ações e as ideias de Albuquerque e que nos foram incutidas durante muitas gerações. A lenda do terríbil começou pouco depois da sua morte (amplificada, por exemplo, com os Comentários do Grande Afonso de Albuquerque escritos pelo filho) e prolongou-se por todo o século XVI, com menções histórico-saudosistas de vários autores sobre os atos do homem que lançara os alicerces do Estado da Índia, e cuja raça se perdera entretanto. Como se vê, não é de hoje a nossa apetência para glorificar os varões do passado e de aviltar os do presente. Depois, e mais recentemente, toda uma mitologia em torno do homem e dos seus feitos foi lentamente sedimentada, à medida que se generalizava a ideia da decadência que se seguiu e que estendeu durante os séculos seguintes. A figura de Albuquerque permanecia, intocável, com louros e cantilena, no panteão do brio nacional: foram-lhe atribuídas qualidades quase sobre-humanas, caráter moral impoluto, génio, visão, grandeza e clarividência irrepetíveis; a conquista de Malaca como traço e prova do seu projeto e do seu génio. Até a malfadada política de casamentos, que tantas vezes lhe foi atribuída como mostra da generosidade fraternal lusitana, aparece, ainda hoje, mencionada em relação a Malaca, quando se sabe que nada disso existiu por aqui. Pelo contrário, ciente da escassez de recursos, de homens e de navios, Albuquerque (e os portugueses de um modo geral, durante os primeiros anos) não incentivou casamentos nem o estabelecimento de uma comunidade portuguesa na cidade: um casado era um soldado a menos na fortaleza e nas armadas. E toda a sua política foi, pelo contrário, no sentido de tentar manter tudo como estava, não mexer no status quo dos tempos do sultanato, nem nos escravos do sultão (que foram sustentados, durante algum tempo, pelo Erário Régio), nem na propriedade fundiária, nem, e sobretudo, na política atrativa para as comunidades mercantis. Como diz o Navegador da Guilda no Dune (perdão pelo aparte), “the spice must flow”.
A última reflexão é apenas uma curiosidade: a impulsividade temerária de Albuquerque levou-o a tomar Malaca, mas uma coisa é o ato de conquista, outra, bem mais complexa, é o que fazer depois. Situada longe dos centros de poder político, naval e militar português (concentrados na costa ocidental indiana), Malaca era uma ilha, rica e cobiçada, num vasto mar potencialmente hostil. Há indicações de que foi tentada, durante algum tempos, a devolução da cidade ao antigo sultão (que entretanto se fixara nas redondezas, havendo, portanto, duas Malacas: uma física e uma política) e que o próprio D. Manuel não afastava tal hipótese, desde que os portugueses mantivessem uma feitoria no porto que era, verdadeiramente, o que interessava.
Malaca manteve-se nas mãos dos portugueses durante 130 anos. A forma como tal foi conseguido, longe de Goa e ainda mais de Lisboa, com poucas defesas e ainda menos soldados, durante um século, e resistiu à pressão impiedosa do garrote holandês durante décadas, é uma outra história (e esta já vai longa). Mas em 1634, ainda a bandeira portuguesa não fora derrubada, já Francisco Sá de Meneses cantava a saudade da antiga proeza da conquista da cidade, numa obra decalcada d’Os Lusíadas – substituindo o Gama por Albuquerque, a jornada de Lisboa a Calecut pela viagem de Cochim a Malaca e os deuses do Olimpo por Asmodeu, príncipe dos demónios – e onde o mito da idade de ouro surge claro e definido: Malaca Conquistada pelo Grande Afonso de Albuquerque.
Foi há 500 anos. Hoje, depois da ocupação holandesa, inglesa, novamente holandesa e novamente inglesa, até à independência da Malásia, Malaca é uma cidade que vive a memória e o prestígio do seu passado. Uma comunidade de luso-descendentes exibe, com orgulho e devoção, a sua ligação a Portugal. É, decerto, um dia de especial significado para eles; são eles o que resta de Portugal por ali.
(Aos eventuais interessados: a RTP-2 prepara, ao que sei, a exibição de uma série documental da autoria de Pedro Palma entre 22 e 26 deste mês, e um documentário, mais recente, no dia 28).

in Jugular - post de Paulo Pinto

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