sexta-feira, novembro 16, 2007

Judgment Day: the Day After

Na sequência do nosso post A fé que não tem coragem de se mostrar, publicamos outro post, do Blog De Rerum Natura, de autoria da Doutora Palmira F. da Silva:



No dia 19 de Outubro de 2004, o conselho de área escolar do distrito de Dover (Pensilvânia, EUA) votou favoravelmente por 6-3 a inclusão do «desenho inteligente», DI, no currículo das escolas da zona. A decisão unilateral do conselho escolar de Dover mereceu protestos veementes dos professores de ciência locais, que, como seria expectável, consideram que o DI não é ciência.


Em 26 de Setembro de 2005 iniciou-se na pequena cidade de Harrisburg, Pensilvânia, o julgamento que ficou conhecido como o julgamento de Kitzmiller, de Tammy Kitzmiller (um dos 11 pais que apresentaram a queixa) et al contra o conselho de área escolar de Dover. Os queixosos, que incluíam ainda as associações laicas American Civil Liberties Union e Americans United for the Separation of Church and State, assentaram o processo no facto de o DI ser religião e ensinar religião como se fosse ciência nas escolas públicas é uma clara violação da Constituição americana.


Em meados de Dezembro do mesmo ano, foi conhecida a decisão do juíz John Jones, um juíz nomeado por Bush e como tal dificilmente acusável de ser um militante (esquerdista) ateu, em relação ao caso. Numa decisão crucial, especialmente se considerarmos o sistema judicial americano em que decisões anteriores sobre um dado tema são utilizadas na determinação de sentenças posteriores, o juiz federal decidiu que o ensino do desenho (pouco) inteligente é inconstitucional já que viola a separação da Igreja e do Estado preconizada na Constituição americana.

Que o DI não passa de religião é explicado pelo juíz na sua opinião de 139 páginas (pdf disponível), muito bem fundamentada e que não deixa margem de manobra ou apelo aos DIistas, «Nós concluímos que não é [ciência] e para além disso que o DI não se consegue separar dos seus antecedentes criacionistas e como tal religiosos».

Podemos ler ainda a opinião do juíz sobre os membros do Conselho de educação que segundo ele disfarçaram os seus verdadeiros motivos (religiosos) para introduzir o DI nos curricula de ciências do distrito de Dover, decisão classificada de «inanidade de tirar a respiração»: «Nós concluímos que os motivos seculares utilizados pelo Conselho não são mais que um pretexto para o verdadeiro objectivo do Conselho, que era a promoção da religião nas salas de aulas públicas».

O juiz, evidenciando que de facto ouviu os muitos cientistas que testemunharam no julgamento e percebeu os motivos religiosos de, por exemplo, Michael Behe - que admitiu que a plausibilidade do DI depende de se acreditar em deus -, declarou que:

«Na realidade a teoria da evolução de Darwin é imperfeita. No entanto, o facto de que uma teoria científica não consegue ainda explicar todos os pontos não deveria ser usado como pretexto para impingir nas salas de aulas de ciências uma hipótese alternativa não falseável e baseada em religião ou para denegrir propostas científicas bem estabelecidas».

Está disponível em português na Crítica, Revista de Filosofia e Ensino, um artigo que conta alguns pormenores da história, escrito por um cientista da Universidade de Chicago, Jerry Coyne, «A fé que não tem coragem de se mostrar», cuja leitura recomendo.

A PBS NOVA realizou um documentário, Judgment Day que foi para o ar ontem, sobre o acontecido. PZ Myers, que analisa a reacção ao documentário dos fundamentalistas do Discovery Institute, indica que essencialmente o documentário deixa claro que o DI não é ciência, é religião pura e dura. Ken Miller, um biólogo (católico) da Universidade Brown, resume na página da PBS a sua apreciação : «[O DI] basicamente pretende trazer o sobrenatural para a ciência. E isso acabaria destruindo quer a ciência quer a religião».

Durante o julgamento, foi ouvido John Haught, professor de teologia na Universidade de Georgetown, chamado a depôr para esclarecer as diferenças filosóficas entre ciência e religião, já que a tarefa (impossível) do advogado de defesa do Conselho Escolar, Richard Thompson, consistiu em (tentar) argumentar que o DI é ciência e não religião.

O testemunho foi completamente contraproducente para o efeito até porque algumas perguntas de Thompson foram autênticos tiros no pé, nomeadamente quando alvitrou que Deus poderia ter feito o genoma dos homens e «macacos» parecer semelhante e, como tal, o conceito de que estamos relacionados por um ancestral comum é «mera conjectura»! Ou seja, a pergunta de Thompson estabeleceu claramente a diferença entre realidade factual e ficção mitológica, entre uma teoria genuinamente científica (fundamentada em factos) e uma explicação religiosa (essa sim mera conjectura sem qualquer suporte experimental).

Se a vida evoluiu segundo uma padrão hierárquico em que novas espécies derivam de espécies já existentes preservando variabilidade genética, então deveremos encontrar os mesmos padrões a nível genético em espécies próximas nesta hierarquia. Se o homem e o chimpazé partilham um ancestral comum devem apresentar genomas semelhantes, como apresentam de facto. Se recuarmos na cadeia ancestral (usando as árvores filogenéticas propostas por dados anatómicos, genéticos e fósseis) devemos encontrar genomas cada vez mais diferentes à medida que recuamos na árvore da evolução, uma vez que os genomas tiveram mais tempo para divergir e acumular diferenças.

E é exactamente o que encontramos. A teoria da evolução é consistente com todos os dados disponíveis e é portanto falsificável. O ancestral comum para o homem e o chimpanzé caíria por terra se a análise genética das espécies não o corroborasse. O DI teria exactamente a mesma resposta se, por acaso, os genomas do homem e do chimpanzé fossem radicalmente diferentes: os desígnios insondáveis do deus«designer»! Desígnios que são «corroborados» por quaisquer dados e os seus opostos já que são insondáveis (aka não falsificáveis)... isto é, assentes em lucubrações/conjecturas teológicas e não em ciência, aliás são a antítese da ciência!

Ken Miller, um comunicador fabuloso, explica neste vídeo em detalhe o tiro no pé do advogado do Discovery Institute. Os interessados podem assistir no YouTube a uma palestra (de cerca de duas horas) de Ken Miller sobre o DI na Case Western University.

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